Acontecem-me coisas únicas a ler
Tchékhov, mestre que nunca me deixa desamparada. Certos contos gravam-se na
minha memória como se eu própria tivesse feito parte do enredo. E não deixa de
ser curioso e inédito que, detestando eu qualquer tipo de moralismos, me deixe
arrebatar de tal modo por estas histórias que acabo inevitavelmente por tomar
partido, afunilando toda a complexidade daquele pedaço
particular da realidade que o conto recorta. Neste segundo volume aconteceu-me
sobretudo com três contos. Com a Anna ao
pescoço, a minha compaixão pela rapariguinha boazinha que sacrifica a sua
vida ao casamento transformou-se subitamente em triunfo agridoce: foda-se tudo,
egoístas de merda! Já com o conto Anjinho,
o caminho foi inverso: abespinha-me aquela mulherzinha, sempre a precisar de um
amor para ter mundo e, subitamente, eis-me de olhos marejados, entendendo os
mecanismos da sua alma e torcendo para que ela tenha aquilo que tanto deseja.
No magistral Enfermaria n. 6, alinho
com Ivan Dmítritch, assanham-me as visitas daquele médico insonso, a sua
sensatez e o seu estoicismo de pacotilha:
- Não, não sou filósofo, mas é isto que cada
qual tem de defender, porque é sensato.
- Não, o que eu quero saber é por
que razão o senhor se considera competente no assunto da consciencialização, do
desprezo pelo sofrimento e assim por diante! Será que alguma vez sofreu? Faz
ideia do que é o sofrimento? Oiça: açoitavam-no quando era criança?
- Não, os meus pais tinham
repugnância pelos castigos corporais.
- Pois a mim, o meu pai açoitava-me
cruelmente. O meu pai era um funcionário bruto, hemorroidal, com nariz comprido
e pescoço amarelo. Mas, falemos antes de si. Em toda a sua vida, ninguém lhe
tocou com um dedo, ninguém o o aterrorizou nem brutalizou; é saudável como um
touro. Cresceu sob a protecção do pai e estudou por conta dele, e depois, logo
a seguir, arranjou uma sinecura. Vive há mais de vinte anos numa casa gratuita,
com aquecimento, iluminação, criadagem, tem o direito de trabalhar como e
quando lhe apetece, e mesmo de não fazer nada. Pela sua natureza, é um homem
preguiçoso, mole, por isso tentou organizar a sua vida de modo a que nada o
incomodasse e o fizesse mexer. Entregou tudo ao seu auxiliar-médico e a outros
canalhas, e deixou-se ficar sentado no quentinho, sossegado, acumulando
dinheiro e lendo livrinhos, deliciando-se com reflexões sobre todo o género de
disparates sublimes e (Ivan Dmítritch olhou para o nariz vermelho do doutor)
bebendo sempre o seu copinho. Numa palavra, não viveu a vida, não a conhece,
absolutamente, e tem uma noção da realidade apenas teórica […] Um jovem
pede-lhe um conselho: o que fazer, como viver;
antes de lhe responder, uma pessoa pensaria um bocado, mas o senhor já
tem a resposta pronta: aspira à consciencialização e ao verdadeiro bem. Mas o que
é esse fantástico «verdadeiro bem»? A resposta, obviamente, não existe. Mantêm-nos
aqui atrás das grades, deixam-nos apodrecer, torturam-nos, mas isso é
maravilhoso e sensato, porque entre esta enfermaria e um gabinete quentinho e
acolhedor não há diferença nenhuma. É uma filosofia muito cómoda: não precisa
fazer nada, a consciência está limpa e pode sentir-se filósofo… Não, meu
senhor, isso não é filosofia nem pensamento, nem largueza de vistas, é antes
preguiça, faquirismo, uma modorra idiota… Sim! – voltou a zangar-se Ivan
Dmítritch. – Despreza o sofrimento, mas se, digamos, lhe entalassem o dedo na
porta, berraria a plenos pulmões!
No entanto, quando o médico se
entala por fim, lá se foi o meu desprezo, estou inteiramente do lado dele, a
berrar. Talvez Tchekhóv me provoque tanta adesão e oscilação de humores porque
também eu sou um idiota, porque sofro,
estou insastisfeito e me espanto com a infâmia humana.
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