domingo, 22 de julho de 2018

O Idiota



Quanto mais leio Dostoievski, mais me convenço de que a sua obra se concentra no dissecar dos “bons sentimentos” e das suas implicações sobre o sistema nervoso. Os protagonistas das suas histórias costumam estar reféns das ideias delirantes da monomania e, rodeados de gente oportunista e cínica, tendem a deixar-se arrastar com volúpia até às mais profundas camadas do abismo, exactamente por não saberem moderar as afecções dos seus sentimentos e códigos éticos. É o caso de Crime e Castigo, Os Irmãos Karamázov e O Idiota – Raskólnikov, Dimitri e Ivan Karamázov, Nastássia Filíppovna estão todos sob o signo da honra maculada e do orgulho ferido e, partindo desses sentimentos, deleitam-se rebolando na lama, destruindo-se a si próprios num derradeiro acto de vingança contra essa ordem das coisas que tanto os magoa. 

Não deixa de ser curioso que todos estes dramas sejam atravessados sempre pela questão do ateísmo, o que também me faz crer que os romances existencialistas de Dostoievski são explorações profundamente políticas, nascidas num século XIX que testemunha privilegiadamente a colisão dos valores humanistas com uma ética capitalista nihilista. Fui reler os meus apontamentos à leitura de Os Irmãos Karamázov e encontrei a seguinte reflexão: “Aqui todos acabam destroçados, acossados por febres nervosas e raiva. A vida moderna exige a falência de todos os valores para que nenhum totalitarismo se possa opor a um mercado livre. O sistema capitalista requer a premissa de que tudo é permitido, tendo como efeito colateral uma certa institucionalização do crime que torna todos criminosos, tanto os que alinham como os que desalinham. Num mundo que perdeu o valor da promessa, «a palavra de honra», ninguém se salva e quem se continua a guiar por tais valores, é tomado por louco ou por idiota, vociferando palavras que já ninguém entende.”

O príncipe Lev Nikoláevitch Míchkin é esse idiota, epitomizado pelo título da obra e a sua ética da compaixão não é entendida por ninguém, nem mesmo pela melhor e mais decadente aristocracia, apenas pelas crianças. Este idiota distingue-se das outras personagens ultrajadas apenas no ponto de partida, isto é, pelo afecto dominante – nele tudo é compaixão e empatia; encontrará no entanto um destino ainda mais cruel. Excesso de empatia, meu nobre príncipe: todo o mundo tem as suas razões mas é preciso cuidado quando procuramos compreender e perdoar a todos – não é humanamente possível abrigar todas as dores do mundo num único corpo.

O príncipe saltou da cadeira, novamente assustado. Quando Rogójin se calou
(e ele calou-se de repente) , inclinou-se devagar para ele, sentou-se ao seu lado e, com o coração a bater fortemente, respirando com dificuldade, ficou a olhá-lo. Rogójin não voltou a cabeça, até parecia ter-se esquecido dele. O príncipe olhava e esperava; o tempo ia passando, começava a clarear. Rogójin, de vez em quando, começava de repente num balbucio brusco e desconexo, em voz alta e rouca; começava a gritar e a rir-se; o príncipe estendia para ele a mão trémula e tocava-lhe suavemente na cabeça, nos cabelos, afagava-lhos e acariciava-lhe as faces… não podia fazer mais nada! Ele próprio tinha começado outra vez a tremer, e de novo as suas pernas pareciam paralisadas. Uma sensação completamente nova invadia-lhe o coração com uma infinita mágoa. Entretanto amanheceu completamente: por fim, deitou-se na almofada, já completamente exausto e desesperado, e encostou o rosto ao rosto pálido e imóvel de Rogójin; as lágrimas corriam-lhe dos olhos para as faces de Rogójin, mas talvez ele já não sentisse as suas próprias lágrimas e não soubesse nada delas…

Quando, já passadas muitas horas, abriram a porta e as pessoas entraram, encontraram o assassino completamente desmaiado e febril. O príncipe estava sentado na esteira ao lado dele, imóvel, e aos acessos de gritos e delírios do doente, passava-lhe suavemente a mão trémula pelos cabelos e pelas faces, como que a acariciá-lo e a acalmá-lo. Mas já não compreendia nada do que lhe perguntavam, nem reconhecia as pessoas que entravam e o rodeavam. E se o próprio Schneider aparecesse agora, vindo da Suiça, para ver o seu antigo aluno e paciente, também ele, recordando o estado em que por vezes o príncipe ficava no primeiro ano de tratamento na Suiça, agitaria a mão e diria, como nesse tempo: «Idiota!»

1 comentário:

Ana Lorena disse...

Belíssima análise! :)