Quanto mais leio Dostoievski,
mais me convenço de que a sua obra se concentra no dissecar dos “bons
sentimentos” e das suas implicações sobre o sistema nervoso. Os protagonistas
das suas histórias costumam estar reféns das ideias delirantes da monomania e,
rodeados de gente oportunista e cínica, tendem a deixar-se arrastar com volúpia
até às mais profundas camadas do abismo, exactamente por não saberem moderar as
afecções dos seus sentimentos e códigos éticos. É o caso de Crime e Castigo, Os Irmãos Karamázov e O
Idiota – Raskólnikov, Dimitri e Ivan Karamázov, Nastássia Filíppovna estão todos sob o signo da honra maculada e do orgulho ferido e, partindo desses
sentimentos, deleitam-se rebolando na lama, destruindo-se a si próprios num derradeiro
acto de vingança contra essa ordem das coisas que tanto os magoa.
Não deixa de
ser curioso que todos estes dramas sejam atravessados sempre pela questão do
ateísmo, o que também me faz crer que os romances existencialistas de Dostoievski
são explorações profundamente políticas, nascidas num século XIX que testemunha
privilegiadamente a colisão dos valores humanistas com uma ética capitalista
nihilista. Fui reler os meus
apontamentos à leitura de Os Irmãos
Karamázov e encontrei a seguinte reflexão: “Aqui todos acabam destroçados,
acossados por febres nervosas e raiva. A vida moderna exige a falência de todos
os valores para que nenhum totalitarismo se possa opor a um mercado livre. O
sistema capitalista requer a premissa de que tudo é permitido, tendo como
efeito colateral uma certa institucionalização do crime que torna todos
criminosos, tanto os que alinham como os que desalinham. Num mundo que perdeu o
valor da promessa, «a palavra de honra», ninguém se salva e quem se continua a
guiar por tais valores, é tomado por louco ou por idiota, vociferando palavras
que já ninguém entende.”
O príncipe Lev Nikoláevitch
Míchkin é esse idiota, epitomizado pelo título da obra e a sua ética da
compaixão não é entendida por ninguém, nem mesmo pela melhor e mais decadente
aristocracia, apenas pelas crianças. Este idiota distingue-se das outras
personagens ultrajadas apenas no ponto de partida, isto é, pelo afecto
dominante – nele tudo é compaixão e empatia; encontrará no entanto um destino
ainda mais cruel. Excesso de empatia, meu nobre príncipe: todo o mundo tem as
suas razões mas é preciso cuidado quando procuramos compreender e perdoar a
todos – não é humanamente possível abrigar todas as dores do mundo num único
corpo.
O príncipe
saltou da cadeira, novamente assustado. Quando Rogójin se calou
(e ele
calou-se de repente) , inclinou-se devagar para ele, sentou-se ao seu lado e,
com o coração a bater fortemente, respirando com dificuldade, ficou a olhá-lo.
Rogójin não voltou a cabeça, até parecia ter-se esquecido dele. O príncipe
olhava e esperava; o tempo ia passando, começava a clarear. Rogójin, de vez em
quando, começava de repente num balbucio brusco e desconexo, em voz alta e
rouca; começava a gritar e a rir-se; o príncipe estendia para ele a mão trémula
e tocava-lhe suavemente na cabeça, nos cabelos, afagava-lhos e acariciava-lhe
as faces… não podia fazer mais nada! Ele próprio tinha começado outra vez a tremer,
e de novo as suas pernas pareciam paralisadas. Uma sensação completamente nova
invadia-lhe o coração com uma infinita mágoa. Entretanto amanheceu
completamente: por fim, deitou-se na almofada, já completamente exausto e
desesperado, e encostou o rosto ao rosto pálido e imóvel de Rogójin; as
lágrimas corriam-lhe dos olhos para as faces de Rogójin, mas talvez ele já não
sentisse as suas próprias lágrimas e não soubesse nada delas…
Quando,
já passadas muitas horas, abriram a porta e as pessoas entraram, encontraram o
assassino completamente desmaiado e febril. O príncipe estava sentado na
esteira ao lado dele, imóvel, e aos acessos de gritos e delírios do doente,
passava-lhe suavemente a mão trémula pelos cabelos e pelas faces, como que a
acariciá-lo e a acalmá-lo. Mas já não compreendia nada do que lhe perguntavam,
nem reconhecia as pessoas que entravam e o rodeavam. E se o próprio Schneider
aparecesse agora, vindo da Suiça, para ver o seu antigo aluno e paciente, também
ele, recordando o estado em que por vezes o príncipe ficava no primeiro ano de
tratamento na Suiça, agitaria a mão e diria, como nesse tempo: «Idiota!»
1 comentário:
Belíssima análise! :)
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