domingo, 17 de novembro de 2019

Viva México




“O México é vinte vezes maior do que Portugal. (…)
Esta é pois a história de um país violento e desmesurado. «O mexicano faz amor com a morte», dirá alguém a certa altura, logo no início da viagem. É esse o principal traço de carácter associado à identidade mexicana. Não é por acaso que há caveiras na capa de Viva México.  Parecem rir-se de nós, daqueles de nós que não aprenderam ainda, como os mexicanos, a rir-se delas.
E contudo talvez tudo isto não passe de pura ficção. Não no sentido de a ficção ser o contrário da verdade. Ficção por ser uma memória inventada. Por corresponder ao modo como Jean Cocteau definia o surrealismo: como «mais verdadeiro do que o verdadeiro». Talvez comece aqui o carácter literário de um país que o papa do surrealismo, André Breton, descreveu como o mais surrealista do mundo.”
do prefácio de carlos vaz marques

“Ninguém poderá alguma vez dizer que viu a Cidade do México. Quando a começamos a ver, calamo-nos, e depois nunca mais acabamos de a ver.
(…)
A Cidade do México é isto: a partir de agora somos bichos em alerta.
(…)
Era uma vez uma piñata. As crianças batiam-lhe com paus até caírem caveiras de açucar. Foi o meu primeiro México, numa história de aventuras. Muitos anos depois vi mexicanos. Foi nos Estados Unidos. Havia o cinema, claro, sempre a caminho do Rio Bravo, e Buñuel sempre a atormentar a Europa. Houve a música de Chavela Vargas, arranca-corações. O México Insurrecto e o Debaixo do Vulcão em traduções exasperantes. A Planície em Chamas de Juan Rulfo e A Chama Dupla de Octavio Paz. Os poemas índios de Herberto, Artaud entre os tarahumara. Imagens vagas de Breton, Trotski e Tina Modotti. O México de J. M. G. Le Clézio. Frida Kahlo por Frida Kahlo: «Enorme coluna vertebral que é base para toda a estrutura humana. Já veremos, já aprenderemos. Sempre há coisas novas. Sempre ligadas às antigas vivas.»
(…)
Aqui estou, Frida, sentada em frente ao teu retrato. As coisas novas ligadas às antigas vivas, vamos a isso.
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Mas também foi Fuentes quem lhe chamou «a mulher irrepetível», e eu vejo-a de pescoço alto, com a sua cauda de coisas antigas, em parte aztecas, em parte europeias, a prodigiosa indígena cheia de humor negro decidida a enfrentar los cabrones, uma aparição do Novo Mundo que a cada manhã trazia os mais requintados veludos, bordados e cetins do México, e em cada dedo um anel, e no colo jóias de terracota, e nas orelhas as pequenas caixinhas com pirilampos das camponesas, ela que tinha olhos, todos o disseram, de obsidiana.
(…)
Coyoacán foi o mundo de Frida como o Yorkshire foi o mundo de Emily Brontë. E tal como Emily também Frida cresceu a saber o que poucos aprendem: que o amor é o mais forte instinto de sobrevivência, mais forte do que a fome.
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É uma crença antiga, a de que os deuses marcam os seus.
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Na minha cabeça, a obsidiana é uma propriedade de Herberto Helder. Descobri-a nos textos dele sem saber o que era. Era uma palavra que fazia parte de um mundo. Depois um dia vi obsidiana nos Açores. Esse vidro vulcânico «que se forma quando as lavas incandescentes, a 600 graus, com alto conteúdo de sílica, esfriam rapidamente», como explica agora o painel em Oaxaca. Geralmente é negra, mas «também pode ser avermelhada, cor de café, verde, ou com raios de cores diferentes». A sua transparência, translucidez e brilho «dependem da espessura do fragmento e da luz debaixo da qual o observemos». O conhecimento da obsidiana no México antigo «provém de tempos pré-históricos do povoamento da América, pelo menos desde 10 000 a.C.».
Afiada, corta. Polida, faz de espelho. Nela se miraram imperadores, perscrutando o futuro. Pode servir para tudo e para nada, só a acumular energia séculos fora.
É o que podemos dizer da poesia, quando podemos.
(…)
O México dá vontade de chorar, um choro de séculos em que não percebemos porque choramos, se somos nós que choramos, se não seremos nós já eles. Nunca, em lugar algum, me pareceu que tudo coexiste, tempos e espaços, cimento e natureza, homens e animais, até aceitarmos que o nosso próprio corpo faz parte daquela amálgama acre, ligeiramente ácida, de pele suada com muito chile.
Octavio Paz descreve os mexicanos como o mais solitário dos povos, perpetuamente incapaz de transpor e ser transposto. Por isso, e por tudo e por nada, existe a fiesta. É uma necessidade orgânica, a descarga.
Este Novo Mundo começa no extermínio, e isso há-de significar qualquer coisa. No tempo indígena significa que o extermínio histórico faz parte do presente.
Certa vez, Frida Kahlo descreveu uma imagem a um amigo: «É de dia e de noite, e há um esqueleto (ou morte) que foge espavorido da minha vontade de viver.» Anos depois, pintou Viva la Vida por cima de talhadas de melancia, e essa é a sua última palavra. Afixo-a no frigorífico na noite em que volto.
Vai ser dia no México. Que les vaya bien.

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