“O
México é vinte vezes maior do que Portugal. (…)
Esta
é pois a história de um país violento e desmesurado. «O mexicano faz amor com a
morte», dirá alguém a certa altura, logo no início da viagem. É esse o
principal traço de carácter associado à identidade mexicana. Não é por acaso
que há caveiras na capa de Viva México. Parecem rir-se de nós, daqueles de nós que
não aprenderam ainda, como os mexicanos, a rir-se delas.
E
contudo talvez tudo isto não passe de pura ficção. Não no sentido de a ficção
ser o contrário da verdade. Ficção por ser uma memória inventada. Por
corresponder ao modo como Jean Cocteau definia o surrealismo: como «mais
verdadeiro do que o verdadeiro». Talvez comece aqui o carácter literário de um
país que o papa do surrealismo, André Breton, descreveu como o mais surrealista
do mundo.”
do prefácio de carlos
vaz marques
“Ninguém
poderá alguma vez dizer que viu a Cidade do México. Quando a começamos a ver,
calamo-nos, e depois nunca mais acabamos de a ver.
(…)
A
Cidade do México é isto: a partir de agora somos bichos em alerta.
(…)
Era
uma vez uma piñata. As crianças
batiam-lhe com paus até caírem caveiras de açucar. Foi o meu primeiro México,
numa história de aventuras. Muitos anos depois vi mexicanos. Foi nos Estados
Unidos. Havia o cinema, claro, sempre a caminho do Rio Bravo, e Buñuel sempre a
atormentar a Europa. Houve a música de Chavela Vargas, arranca-corações. O México Insurrecto e o Debaixo do Vulcão em traduções
exasperantes. A Planície em Chamas de
Juan Rulfo e A Chama Dupla de Octavio
Paz. Os poemas índios de Herberto, Artaud entre os tarahumara. Imagens vagas de
Breton, Trotski e Tina Modotti. O México de J. M. G. Le Clézio. Frida Kahlo por
Frida Kahlo: «Enorme coluna vertebral que é base para toda a estrutura humana.
Já veremos, já aprenderemos. Sempre há coisas novas. Sempre ligadas às antigas
vivas.»
(…)
Aqui
estou, Frida, sentada em frente ao teu retrato. As coisas novas ligadas às
antigas vivas, vamos a isso.
(…)
Mas
também foi Fuentes quem lhe chamou «a mulher irrepetível», e eu vejo-a de
pescoço alto, com a sua cauda de coisas antigas, em parte aztecas, em parte
europeias, a prodigiosa indígena cheia de humor negro decidida a enfrentar los cabrones, uma aparição do Novo Mundo
que a cada manhã trazia os mais requintados veludos, bordados e cetins do
México, e em cada dedo um anel, e no colo jóias de terracota, e nas orelhas as
pequenas caixinhas com pirilampos das camponesas, ela que tinha olhos, todos o
disseram, de obsidiana.
(…)
Coyoacán
foi o mundo de Frida como o Yorkshire foi o mundo de Emily Brontë. E tal como
Emily também Frida cresceu a saber o que poucos aprendem: que o amor é o mais
forte instinto de sobrevivência, mais forte do que a fome.
(…)
É
uma crença antiga, a de que os deuses marcam os seus.
(…)
Na
minha cabeça, a obsidiana é uma propriedade de Herberto Helder. Descobri-a nos
textos dele sem saber o que era. Era uma palavra que fazia parte de um mundo.
Depois um dia vi obsidiana nos Açores. Esse vidro vulcânico «que se forma
quando as lavas incandescentes, a 600 graus, com alto conteúdo de sílica,
esfriam rapidamente», como explica agora o painel em Oaxaca. Geralmente é
negra, mas «também pode ser avermelhada, cor de café, verde, ou com raios de
cores diferentes». A sua transparência, translucidez e brilho «dependem da
espessura do fragmento e da luz debaixo da qual o observemos». O conhecimento
da obsidiana no México antigo «provém de tempos pré-históricos do povoamento da
América, pelo menos desde 10 000 a.C.».
Afiada,
corta. Polida, faz de espelho. Nela se miraram imperadores, perscrutando o
futuro. Pode servir para tudo e para nada, só a acumular energia séculos fora.
É
o que podemos dizer da poesia, quando podemos.
(…)
O
México dá vontade de chorar, um choro de séculos em que não percebemos porque
choramos, se somos nós que choramos, se não seremos nós já eles. Nunca, em
lugar algum, me pareceu que tudo coexiste, tempos e espaços, cimento e
natureza, homens e animais, até aceitarmos que o nosso próprio corpo faz parte
daquela amálgama acre, ligeiramente ácida, de pele suada com muito chile.
Octavio
Paz descreve os mexicanos como o mais solitário dos povos, perpetuamente
incapaz de transpor e ser transposto. Por isso, e por tudo e por nada, existe a
fiesta. É uma necessidade orgânica, a
descarga.
Este
Novo Mundo começa no extermínio, e isso há-de significar qualquer coisa. No tempo
indígena significa que o extermínio histórico faz parte do presente.
Certa
vez, Frida Kahlo descreveu uma imagem a um amigo: «É de dia e de noite, e há um
esqueleto (ou morte) que foge espavorido da minha vontade de viver.» Anos
depois, pintou Viva la Vida por cima
de talhadas de melancia, e essa é a sua última palavra. Afixo-a no frigorífico
na noite em que volto.
Vai
ser dia no México. Que les vaya bien.
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