quarta-feira, 22 de abril de 2020

a r b o r



Pássaros soltam os seus gritos, chilreiam, lançam apelos roucos, trinados. As grandes árvores estremecem. A natureza convida-te e ama-te. Mordiscas ervas que logo voltas a cuspir: a paisagem inspira-te pouco, a paz campestre não te emociona, o silêncio dos campos não te excita nem te acalma. Só te fascinam por vezes um insecto, uma pedra, uma folha caída, uma árvore: ficas por vezes horas e horas a olhar para uma árvore, a descrevê-la, a dissecá-la: as raízes, o tronco, os ramos, as folhas, cada folha, cada nervura, de novo cada ramo, e o jogo infinito das formas diferentes que o teu olhar ávido exige ou suscita: rosto, cidade, dédalo ou caminho, brasões e cavalgadas. À medida que a tua percepção se torna mais aguda, mais paciente e mais flexível, a árvore explode e renasce, mil tons de verde, mil folhas idênticas e no entanto diferentes. Parece-te que poderias passar a tua vida diante de uma árvore, sem a esgotar, sem a compreender, porque não tens nada para compreender, só para olhar: afinal, tudo o que podes dizer dessa árvore é que é uma árvore: tudo o que essa árvore pode dizer-te é que é uma árvore, raiz, depois tronco, depois ramos, depois folhas. Não podes esperar dela outra verdade. A árvore não tem nenhuma moral a propor-te, nenhuma mensagem a transmitir-te. A sua força, a sua majestade, a sua vida – se é que ainda esperas extrair algum sentido, alguma coragem, dessas metáforas antigas – nunca passam de imagens, de boas notas, tão inúteis como a paz dos campos, a cobardia da água que dorme, a valentia dos pequenos carreiros que sobem não muito alto mas sem a ajuda de ninguém, o sorriso das colinas onde os cachos de uvas amadurecem ao sol.
É por isso que a árvore te fascina, ou te espanta, ou te repousa, é por causa dessa evidência insuspeitada, insuspeitável, do tronco e dos ramos, das folhas. É por isso, talvez, que nunca vais passear com um cão, porque o cão olha para ti, suplica-te, fala-te. Os seus olhos húmidos de reconhecimento, os seus ares de cão maltratado, as suas cabriolas de cão feliz, obrigam-te constantemente a conferir-lhe o ignóbil estatuto de animal doméstico. Não podes manter-te neutro diante de um cão, como não podes manter-te neutro diante de um homem. Mas nunca dialogarás com uma árvore. Não podes viver diante de um cão porque o cão, a cada instante, pedir-te-á para o fazeres viver, o alimentares, o elogiares, seres homem para ele, seres o seu dono, seres o deus que troveja esse nome de cão que o fará deitar-se logo no chão. Mas a árvore nada te pede. Podes ser Deus dos cães, Deus dos gatos, Deus dos pobres, basta que tenhas uma coleira, um pouco de bofe, alguma fortuna, mas nunca serás dono de uma árvore. Nunca poderás fazer mais do que desejar transformar-te em árvore.

Georges Perec, Um homem que dorme

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