quarta-feira, 1 de abril de 2020

O sexo da paisagem



A BOA NOVA ANUNCIADA À NATUREZA

«A boa nova anunciada à natureza» é o escândalo que a minha época não aceita. O Ser existe como beleza, mas nós perdêmo-lo e percorremos toda uma órbita excêntrica para o voltar a encontrar. A Boa Nova dirige-se à Terra no seu todo: não só porque nesta se desenvolveram entidades irredutíveis mas também porque é no seu todo que está ameaçada.
Deixou de se formar a partir da Beleza.
A ideia de que tudo o que não é humano tem, tal como o humano, necessidade de redenção, é vital para a nossa continuação aqui, ou noutro lugar.
No momento da posse, no poema de 11 de Junho (poema que nunca foi encontrado) tudo participa nas diversas partes: a boca, a copa frondosa, o cogumelo, a falésia, o mar, a erva rasteira, a leve aragem, os corpos dos amantes. Os três sexos que movimentam a dança do vivo: a mulher, o homem, a paisagem.
Esta é a novidade: a paisagem é o terceiro sexo.

A paisagem não tem um sexo simples. Nem o homem, nem a mulher. Há, no entanto, alguns factos que aqui consigno:
Na paisagem, ou na geografia imaterial da espécie terrestre, os seres humanos distribuem-se em vagabundos, em formadores, em construtores e em poetas.

Os vagabundos erram à procura de uma nova paisagem. São, desde sempre, exteriores à comunidade. Os construtores são os elementos estabilizadores que prendem toda a geografia imaterial à vida quotidiana. Os formadores sentem essa geografia porque o seu órgão é o coração. Os poetas vêem, e anunciam a geografia imaterial por vir.
Os construtores, os formadores são peregrinos.
Os poetas também o são, de certo modo. Há uma grande afinidade que os liga aos vagabundos. Porque são os únicos que desejam o retorno do ser como Belo.

É vital conhecer a paisagem.
Por um lado, cada uma das suas raças – a floresta, o bosque, o mar, os animais, a falésia, o jardim, a encosta, o vale, o deserto –, induz uma modalidade particular de relacionamento. Por outro lado, é dela e nela que se formam e se modificam as forças que ora dividem, ora unificam os sexos propriamente humanos. A Beleza e a Harmonia não se produzem de forma platónica, nem nascem da exclusiva vontade dos homens.
Sempre que avança ao seu encontro, sob a forma de Beleza, o que têm de mais verdadeiro, deveriam acolhê-lo com gratidão porque precisam do sexo da paisagem, fonte única de toda a Beleza.

Parece-me claro que o centro da paisagem são as florestas e, na sua forma mais acessível, os bosques. Nas florestas, reúnem-se e formam-se a maior parte das forças que, nos humanos, se irão constituir em personalidades renovadas e enriquecidas. Não é nas florestas que se criam as ilusões e a aspiração ao novo? Não é na paisagem que o humano medita e contempla? Não é na sua força que busca a força de cismar?

O vulgo imagina que essas forças são as fadas e outras entidades. Os formadores e os construtores imaginam poder dispensá-las. Deixemo-los imaginar. Até podemos usar as expressões que uns e outros utilizam.

Mas não diremos, como o vulgo, que as fadas podem ser boas e más.
Estas eram, na realidade, chamadas bacantes na antiga Grécia, e viviam em permanência em companhia dos sátiros, num colectivo natural, inconscientes da fragilidade da Harmonia. Atacavam o elo mais fraco do humano – os vagabundos –, insuflavam-lhes dispersão e êxtase,
      o delírio e a embriaguez do novo.
Sempre sátiros e bacantes desejaram partilhar o seu colectivo      natural com o humano. Sempre desejaram que se unissem os sexos humanos e o sexo da paisagem.
         Sempre que isso aconteceu, os vagabundos tornaram-se poéticos e rebeldes. Sempre que isso aconteceu, os formadores foram implacáveis com os vagabundos.

         E os poetas? Associavam-se intimamente à floresta, às suas árvores e aos seus entes fabulosos, a que o vulgo chama elfos e gnomos, seres jubilosos e irónicos. Tentavam transformar a revolta e o desejo de uma comunidade humana mais natural, nascido no coração dos vagabundos, em forças de harmonia, de leveza e de amplitude. É isso a Poesia. Reconhecer a fonte da Beleza, a sua physis e o seu destino. Ofereciam-na aos outros humanos.
         Mas estes, não só ignoravam o seu combate na floresta, como eram implacáveis com os vagabundos.
         Assim se compreende por que seja possível a existência da comunidade e por que esta assenta numa harmonia, numa beleza e numa ponderação da forma, imperfeitas e incompletas. Os formadores e os construtores não querem uma comunidade humana em simbiose com o sexo da paisagem. Excluem a voz do vagabundo. Desprezam os poetas.
No entanto, são os poetas (e não as fadas boas ou más, ou a perícia dos construtores e formadores), intimamente relacionados com as árvores e demais habitantes das florestas, que transmutam a ilusão e o delírio dos vagabundos, seus companheiros espirituais de errância, em harmonia.

         A hera, que sempre foi considerada o emblema das bacantes, indica, quando enrolada num carvalho, num pinheiro ou num castanheiro, o lugar onde essa transmutação fisicamente se opera. Por esse motivo, não se devem cortar as heras que envolvem essas árvores.
         O mar produz amplitude, mas por acção das ninfas sobre os náufragos, que são outra forma de vagabundos. Ninguém quer, de facto, naufragar.
         E eu pergunto-vos: Haverá alguém que, por sua livre vontade, queira ser vagabundo? Por que se lhes exige o preço – e um preço tão elevado –, pela sua errância? Por que são tão implacáveis com o novo? Por que são tão opacos com o trabalho do poeta? Por que querem submeter a visão à razão?

         Imensa é a generosidade dos poetas. São eles os únicos humanos que vêem que a formação da comunidade dos homens passa por processos cíclicos que é necessário abrir e fechar cuidadosamente. Usam uma métrica e um tom elevado por respeito pela dor dos vagabundos. Combatem com o invisível por misericórdia para com o destino dos homens e da paisagem.

Maria Gabriela Llansol, Onde vais, Drama-Poesia?

Sem comentários: