A BOA NOVA
ANUNCIADA À NATUREZA
«A boa nova
anunciada à natureza» é o escândalo que a minha época não aceita. O Ser existe
como beleza, mas nós perdêmo-lo e percorremos toda uma órbita excêntrica para o
voltar a encontrar. A Boa Nova dirige-se à Terra no seu todo: não só porque
nesta se desenvolveram entidades irredutíveis mas também porque é no seu todo
que está ameaçada.
Deixou
de se formar a partir da Beleza.
A
ideia de que tudo o que não é humano tem, tal como o humano, necessidade de
redenção, é vital para a nossa continuação aqui, ou noutro lugar.
No
momento da posse, no poema de 11 de Junho (poema
que nunca foi encontrado) tudo participa nas diversas partes: a boca, a
copa frondosa, o cogumelo, a falésia, o mar, a erva rasteira, a leve aragem, os
corpos dos amantes. Os três sexos que movimentam a dança do vivo: a mulher, o
homem, a paisagem.
Esta
é a novidade: a paisagem é o terceiro sexo.
A
paisagem não tem um sexo simples. Nem o homem, nem a mulher. Há, no entanto,
alguns factos que aqui consigno:
Na
paisagem, ou na geografia imaterial da espécie terrestre, os seres humanos
distribuem-se em vagabundos, em formadores, em construtores e em poetas.
Os
vagabundos erram à procura de uma nova paisagem. São, desde sempre, exteriores
à comunidade. Os construtores são os elementos estabilizadores que prendem toda
a geografia imaterial à vida quotidiana. Os formadores sentem essa geografia
porque o seu órgão é o coração. Os poetas vêem, e anunciam a geografia
imaterial por vir.
Os
construtores, os formadores são peregrinos.
Os
poetas também o são, de certo modo. Há uma grande afinidade que os liga aos
vagabundos. Porque são os únicos que desejam o retorno do ser como Belo.
É
vital conhecer a paisagem.
Por
um lado, cada uma das suas raças – a floresta, o bosque, o mar, os animais, a
falésia, o jardim, a encosta, o vale, o deserto –, induz uma modalidade
particular de relacionamento. Por outro lado, é dela e nela que se formam e se
modificam as forças que ora dividem, ora unificam os sexos propriamente humanos.
A Beleza e a Harmonia não se produzem de forma platónica, nem nascem da
exclusiva vontade dos homens.
Sempre
que avança ao seu encontro, sob a forma de Beleza, o que têm de mais
verdadeiro, deveriam acolhê-lo com gratidão porque precisam do sexo da
paisagem, fonte única de toda a Beleza.
Parece-me
claro que o centro da paisagem são as florestas e, na sua forma mais acessível,
os bosques. Nas florestas, reúnem-se e formam-se a maior parte das forças que,
nos humanos, se irão constituir em personalidades renovadas e enriquecidas. Não
é nas florestas que se criam as ilusões e a aspiração ao novo? Não é na
paisagem que o humano medita e contempla? Não é na sua força que busca a força
de cismar?
O
vulgo imagina que essas forças são as fadas e outras entidades. Os formadores e
os construtores imaginam poder dispensá-las. Deixemo-los imaginar. Até podemos
usar as expressões que uns e outros utilizam.
Mas
não diremos, como o vulgo, que as fadas podem ser boas e más.
Estas
eram, na realidade, chamadas bacantes na antiga Grécia, e viviam em permanência
em companhia dos sátiros, num colectivo natural, inconscientes da fragilidade
da Harmonia. Atacavam o elo mais fraco do humano – os vagabundos –,
insuflavam-lhes dispersão e êxtase,
o
delírio e a embriaguez do novo.
Sempre
sátiros e bacantes desejaram partilhar o seu colectivo natural com o humano. Sempre desejaram que
se unissem os sexos humanos e o sexo da paisagem.
Sempre
que isso aconteceu, os vagabundos tornaram-se poéticos e rebeldes. Sempre que
isso aconteceu, os formadores foram implacáveis com os vagabundos.
E
os poetas? Associavam-se intimamente à floresta, às suas árvores e aos seus
entes fabulosos, a que o vulgo chama elfos e gnomos, seres jubilosos e
irónicos. Tentavam transformar a revolta e o desejo de uma comunidade humana
mais natural, nascido no coração dos vagabundos, em forças de harmonia, de
leveza e de amplitude. É isso a Poesia. Reconhecer a fonte da Beleza, a sua physis e o seu destino. Ofereciam-na
aos outros humanos.
Mas
estes, não só ignoravam o seu combate na floresta, como eram implacáveis com os
vagabundos.
Assim
se compreende por que seja possível a existência da comunidade e por que esta
assenta numa harmonia, numa beleza e numa ponderação da forma, imperfeitas e
incompletas. Os formadores e os construtores não querem uma comunidade humana
em simbiose com o sexo da paisagem. Excluem a voz do vagabundo. Desprezam os
poetas.
No entanto, são os poetas (e não as fadas boas
ou más, ou a perícia dos construtores e formadores), intimamente relacionados
com as árvores e demais habitantes das florestas, que transmutam a ilusão e o
delírio dos vagabundos, seus companheiros espirituais de errância, em harmonia.
A
hera, que sempre foi considerada o emblema das bacantes, indica, quando enrolada
num carvalho, num pinheiro ou num castanheiro, o lugar onde essa transmutação
fisicamente se opera. Por esse motivo, não se devem cortar as heras que
envolvem essas árvores.
O
mar produz amplitude, mas por acção das ninfas sobre os náufragos, que são outra
forma de vagabundos. Ninguém quer, de facto, naufragar.
E
eu pergunto-vos: Haverá alguém que, por sua livre vontade, queira ser
vagabundo? Por que se lhes exige o preço – e um preço tão elevado –, pela sua
errância? Por que são tão implacáveis com o novo? Por que são tão opacos com o
trabalho do poeta? Por que querem submeter a visão à razão?
Imensa
é a generosidade dos poetas. São eles os únicos humanos que vêem que a formação
da comunidade dos homens passa por processos cíclicos que é necessário abrir e
fechar cuidadosamente. Usam uma métrica e um tom elevado por respeito pela dor
dos vagabundos. Combatem com o invisível por misericórdia para com o destino
dos homens e da paisagem.
Maria Gabriela Llansol, Onde vais, Drama-Poesia?
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