domingo, 12 de outubro de 2008

Esperança

Habito nesta casa velha de três andares há mais de 40 anos. Conheço cada canto escuro de humidade, o ranger frágil das escadas de madeira que atravessam todos os andares, as zonas que o sol ilumina fortemente de manhã e as curvas por onde passa no seu ocaso. Conheço intimamente as manchas de café nos sofás com motivos florais gastos na sala de estar onde já ninguém está, a poeira instalada de modo persistente nos móveis antiquados, os quadros de todas as estações enquadrados por cada janela desta casa silenciosa.

Nasci no quarto de meus pais, no segundo andar, em 1913, numa tarde pontuada por uma chuva mansa e persistente, apenas perturbada pelos gritos de agonia da minha jovem mãe, que aumentaram de intensidade quando a parteira lhe mostrou o meu corpo prematuro e violeta e minha mãe se apercebeu de que o seu primeiro filho era uma menina de olhos excessivamente grandes, morta à nascença.

Penso que minha mãe nunca recuperou verdadeiramente daquela perda e que uma parte da sua juventude e alegria ficou para sempre encerrada no meu rosto violeta. Recordo o seu empenho e diligência em escolher-me um nome para colocar na lápide de mármore e a sua exigência ao severo padre da aldeia em baptizar-me numa cerimónia em que ninguém compareceu para além de minha mãe, nem sequer o meu pai, que decidira sofrer em silêncio e só, observando de quando em quando minha mãe, para se certificar de que esta não tinha perdido o juízo.

Ao longo dos anos, vivi sempre a seu lado, incapaz de a abandonar, espiando todos os movimentos do seu corpo pequeno e magro, os olhares que longas vezes se perdiam no horizonte, sempre atenta à sua voz rouca e frases quebradas, vigiando a escuridão absoluta das suas noites de insónia, sempre descobrindo no seu colo o espaço da minha ausência, da menina Esperança, «Com amor e eterna saudade dos seus pais».

Fui ficando, conheci os meus irmãos, acompanhei os seus primeiros passos, as aventuras da sua infância, as primeiras desventuras da adolescência, comunguei das suas alegrias e tristezas nos almoços de domingo, onde todos permaneciam silenciosos e encerrados no seu mistério e minha mãe sorria, de quando em quando, como uma estátua enigmática de pedra branca. Até que todos foram partindo, um por sua vez, minha irmã para casar e meu irmão para estudar e perder-se no mundo.
Meu pai, homem trabalhador e sóbrio, de mãos pesadas, grossas e ásperas, sempre instalado nos fins de tarde na doçura da sua presença, a fumar cachimbo e a observar atentamente as nuvens azuladas do fumo, morreu na tarde de verão mais quente que alguma vez vivi. Partiu sem um queixume, sem uma sombra no seu olhar, poucas semanas depois de saber que meu irmão abandonara o curso de Direito em Coimbra para partir pelo mundo como marinheiro. Almoçou calmamente como sempre o fazia, levantou-se e anunciou a minha mãe que iria descansar um pouco, beijou de modo trémulo a testa de minha mãe, que tricotava distraidamente na sala de estar, rodeada pelos motivos florais ainda não tão gastos do sofá, e cambaleou até à rede ancorada na figueira que abraça as traseiras desta casa, seguido pelo seu cão Tejo.
Morreu nessa rede, embalado num sono pesado, na mesma rede onde fui concebida numa manhã branca e ligeira por um casal jovial e risonho que nunca encontrei, a rede onde a minha irmã chorou a perda do seu primeiro amor, onde meu irmão sonhou com paisagens inóspitas e mulheres exóticas de países distantes, a rede onde minha mãe se sentou incontáveis vezes, olhando as estrelas em noites frias com um olhar pesado e vazio, tentando imaginar à força que aspecto teria eu tido aos 3 anos, aos 4, aos 7, aos 20, que linhas de carácter teriam tecido meu destino e que conversas teríamos as duas. Sem imaginar jamais que ali estava eu, a seu lado, sem respirar mas atenta a todas as ondas que dela emanavam. Sempre, como uma sombra a quem ninguém devolve o olhar. Como o cão Tejo que até morrer de cansaço e velhice, permaneceu ainda sete anos junto da rede onde meu pai faleceu, fiel na sua espera inútil e na esperança do dia em que o dono regressaria. Porque os cães e os fantasmas não conseguem compreender a ideia da morte.

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