domingo, 19 de outubro de 2008

A Metamorfose


Passados muitos anos, voltei a reler A Metamorfose de Kafka. Recordei o gume da frase de abertura: «Certa manhã, ao acordar após sonhos agitados, Gregor Samsa viu-se na sua cama, metamorfoseado num monstruoso insecto.» O absurdo da história voltou a impressionar-me profundamente, e não me refiro à metamorfose de Gregor Samsa num insecto (ou verme com Valdimir Nabokov defendia ser a tradução correcta da palavra alemã Ungeziefer) – afinal, estas coisas acontecem quotidianamente a muitos de nós – mas à servidão voluntária do protagonista que, acordando numa situação-limite, não consegue quebrar com a formatação que lhe impuseram e que ele assumiu, continuando a insistir na permanência no real, no correcto, no concreto e no útil para a comunidade, para lá de toda a racionalidade.


A razão tem destas coisas quando se apura demasiado, acaba por nos trocar as voltas e enredar no absurdo de termos perdido o nosso tempo a trabalhar desalmadamente num trabalho chato para um patrão filha-da-puta, para pagar uma dívida que nunca existiu e sustentar vícios e parasitas que a sociedade de consumo transformou em necessidades vitais. E um dia acordamos - e que é feito da nossa humanidade, onde estão os outros, a comunidade que sustentava o nosso quotidiano na sua hipocrisia, frustração e monetarização -, mas não conseguimos desligar o programa, e vamos tentando em vão equilibrar-nos nas frágeis patas que substituíram os nossos membros inferiores, para apanharmos o próximo comboio e não chegarmos mais atrasados ao trabalho que detestamos, porque não podemos ficar o dia inteiro na cama a olhar para as paredes ou colados ao tecto do nosso quarto, não foi para isso que nos preparam. Se é certo que a liberdade tem um preço e apenas temos que decidir se o queremos pagar, também o tempo de vida que desperdiçamos, nos será reclamado.

Dos treze para os vinte seis, a passagem do tempo não alterou a minha leitura da obra, mas percebi que me tornou mais crua e ácida para com as vítimas. É triste o que acontece a Gregor Samsa numa certa manhã, mas assim como o seu pai agressivo, a sua mãe ausente e a sua irmã egoísta, também eu me sinto incapaz de compaixão por ele, não comungando do seu espírito de sacrifício. Chego, mais uma vez ao final do romance com um sentimento de angústia e revolta: odeio a sua família e desprezo Gregor, incapaz de odiar e de se revoltar – um verme, no final das contas. Descarto-o porque desde o início ele se torna descartável; violento-o também porque ele assim o pede.


Desde tenra idade que tenho um problema com as vítimas; detesto os agressores mas entendo-me bem com eles, a sua linguagem é básica e a retaliação é fácil. Pelo contrário, não lido muito bem com a vítima que aceita ser espancada e espezinhada, que consente na sua servidão e na violência sobre si. Os cristãos chamam-lhe abnegação, humildade, altruísmo, perdão, uma infinidade de palavras com conotações positivas que nos permitirão o acesso a um reino paradisíaco, além, sempre num futuro próximo, que tarda ou parece não se cumprir. (Neste ponto, surgem-me sempre inúmeras questões – será que dão uma pulseira aos eleitos com livre acesso a todas as festas e banquetes? Será que há animadores nesse local idílico? Haverá sessões de karaoke? E que prazeres se praticam lá, para além dos pecaminosos mortais?).


Essa moral cristã de levar uma bofetada e oferecer a outra face, arrepia-me, tira-me mesmo do sério. Caso haja sessões de karaoke no reino do além, poupem-me ao espectáculo deprimente daquela inglesa rechonchuda com uma saia demasiado curta a revelar as coxas rosa-suíno e o ventre marcado pela menopausa e um divórcio mal resolvido, que costuma aparecer nestas noites a cantar o hit I Will Survive de Gloria Gaynor. Porque eu – e esta é uma das poucas certezas que vou tendo- não sou capaz de sobreviver a isso. Prefiro ficar por cá a beber whiskies e a tomar calmantes para suportar os dias mais pesados. Sofrendo agora e aqui, sem terror de vir a sofrer depois, mesmo que rodeada de querubins assexuados e enlouquecedoramente alvos.

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