terça-feira, 23 de outubro de 2012

Humor & Ternura



Há já algum tempo que sem explicação conhecida me sentia atraída pelo livro A Boneca de Kokoschka de Afonso Cruz, mas a sua leitura ia sendo adiada pela urgência de clássicos. O recente prémio da União Europeia para a Literatura materializou esta vontade, sem que eu entendesse bem porquê, dado que não acredito nem em prémios nem na referida união.

Foi o primeiro livro do autor que li. Proporcionou-me um fim-de-semana muito agradável. Os estranhos nomes e o cenário de uma Dresden bombardeada recordaram-me de imediato um outro universo de escrita: Gonçalo M. Tavares. E embora a minha intuição inicial se viesse a revelar adequada, entre ambos os autores temos apenas essa coincidência de tema, a saber, o eterno e irrespondível tema do Mal. Com a grande diferença essencial, que a escrita de Afonso Cruz não se deixa contaminar pelo objecto de investigação, permanecendo fiel a uma afectividade compassiva, que um olhar mais leviano poderá tomar por ingenuidade.

“Sr. Vogel, se não estiver contente com o rumo das coisas – disse Isaac -, só tem de fazer uma coisa muito simples: juntar os dois pés, concentrar-se e dar um pequeno pulo na vertical. Quando os seus pés tocarem o chão outra vez, a realidade do chão, quando deixarem esse momento celeste que é o salto, quando tocarem o chão, dizia eu, provocará um pequeno tremor que abalará a direcção do universo. Se ia em determinado sentido, sentido que, por certo, não lhe agrada, basta pular para ver mudar o rumo. Mas porque o tremor é muito pequeno, os efeitos não se notam de imediato, no entanto, se pudesse olhar para o futuro, veria como foi diferente daqueles futuros em que não pulou. A vida é feita destes saltinhos.”

A Boneca de Kokoschka não desalinha órgãos ou ideias nem oferece epifanias. É mais uma aproximação a uma ficção borgesiana, em que mais uma vez se replica o eterno debate entre a vida e a ficção. O mais das vezes é a ficção a insistir em suplementar a vida, com um editor a encomendar biografias imaginárias e até obras desses biografados inventados, um homem com reticências cranianas, uma livraria chamada Humilhados & Ofendidos, cartas de amor que colocam no mesmo plano o eterno e a secção de enlatados do supermercado, um livro dentro do livro, um coleccionador de borboletas excêntrico que tenta pesar o Mal e uma prostituta que faz descontos a homens de esquerda. Em ocasiões mais raras, é a vida que se liberta da sua modorra e explode numa riqueza que ultrapassa qualquer possibilidade de imaginação.

“ – (…) Não existe mentira na literatura, na ficção, e, digo-lhe mais, não existe verdade na vida real. Se perceber isto muito bem, perceberá muito mais coisas. Quer mais brandy?”

Repete a receita mais arcaica para derrotar o Mal: a sua nomeação pela narração. Repete que sem os outros não somos nada e que apenas a sobreposição de vários ângulos ao mesmo tempo, mesmo os mais inimagináveis, dissipa as grades com que a alma escolheu engaiolar-se, até porque o grande inimigo está dentro de nós, neste corpo que alimentamos e vestimos.

Centra toda a sua mensagem numa apologia banal do amor. “Lutamos então contra a maior força do cosmos, contra aquilo que o caracteriza, contra aquilo que ele faz: expandir-se. O universo expande-se, mesmo nos momentos de ócio. Isso quer dizer que separa tudo, faz com que todas as coisas se afastem, se dissolvam. O amor vai juntando as peças que pode – como um velho reformado a jogar dominó – e o universo está aqui para baralhar tudo outra vez.” Banal porque a a história da nossa cultura é rica nestas chamadas de atenção sobre o poder aglutinador de Eros, que remontam aos seus inícios com Empédocles e Platão, entre outros.

Um aviso reiteradamente afirmado e jamais concretizado que justifica a insistência. Por isso, repetir nunca é demais. E Afonso Cruz fá-lo com imensa criatividade, humor e erudição e do que andamos precisados, meus caros, é disto mesmo, desta amálgama de humor e ternura para renovar optimismos e esperanças. Eu, por mim aceito o repto e concluo que não vale a pena tentar enganar-me: não consigo não ser alegre. Temos mais um livro para integrar a tão reduzida lista de uppers, embora seja um upper light, porque não tem aquela grande Beleza que dói de tão bela. Mas merece o prémio e mereceu as minhas duas noites.

“Adele Varga saiu do escritório de Filip Marlov com uma espécie de raiva. Não sabia contra quem a deveria dirigir, mas sentia-se magoada pela maneira como o universo trata os nossos afectos. Entrou no bar mais próximo e pediu um Manhattan. Nessa altura, enquanto bebia, apareceu um homem ao seu lado. Conversaram sobre música porque ele era músico e, no final da noite, apaixonaram-se para sempre. E ficaram assim, nesse estado tão pouco natural, para o resto da sua eternidade: a lutar contra o universo. Ao fundo, ouvia-se uma música de Django Reinhardt: Tears.”

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