sábado, 6 de outubro de 2012

"Prive o homem comum da sua mentira vital e ter­‑lhe­‑á roubado a felicidade."



“Elias Rukla lembrava-se que tivera uma grande decepção quando lera A Insustentável Leveza do Ser de Milan Kundera. Não com o livro, que era muito bom, até mesmo uma obra-prima, mas com o título. O título estava errado. O livro não trata da insustentável leveza do ser, mas de algo distinto. Porque a insustentável leveza do ser não constitui uma condição existencial da vida humana, mas uma condição social para um determinado estrato do mundo ocidental durante a última metade do século XX. A insustentável leveza do ser é algo que afecta as pessoas pensantes e sedentas de conhecimento da Escola Secundária de Fagerborg na capital norueguesa nas últimas duas décadas deste nosso século. E que lhes usurpa a capacidade de dizer alguma coisa a outras pessoas. De falar. A conversa tinha estancado. As pessoas do mesmo estrato social de Elias Rukla já não conversavam. Só de um modo fugaz e superficial. Quase só se limitavam a encolher os ombros entre elas. Talvez ante os demais, numa espécie de cumplicidade irónica (…) Ah, quanto ansiava que alguém conseguisse sair desse mutismo e dissesse algo, ainda que fosse apenas para referir que a vida tinha mais coisas para oferecer. Na realidade, o que procurava era que alguém fizesse uma alusão nesse sentido, mesmo que fosse em forma de código, por exemplo, se alguém durante um desses rápidos intercâmbios de comentários tivesse levantado de repente o dedo indicador em direcção ao céu, assinalando desse modo que na nossa parte do mundo existe uma longa tradição religiosa baseada no cristianismo, e que por isso se costuma apontar lá para cima, com o indicador esticado para o céu, onde, segundo a tradição, se encontram Deus e os seus anjos, e também os bem-aventurados, Elias Rukla tê-lo-ia abraçado, independentemente do quão irónico esse indicador pudesse parecer, tanto para o que teve esse impulso como para os demais (…). Ah, estava verdadeiramente esfomeado, e sentia que o seu cérebro se encontrava sobreaquecido, como se estivesse a incubar uma meningite espiritual que podia brotar a qualquer momento, pelo que não se podia considerar inteiramente responsável pelos seus actos, era como se esperasse um ataque, como se encontrasse um vómito tremendo e libertador à sua frente, no futuro imediato, mas que não chegava nunca. Procurava nos seus colegas algo que pudesse expressar essa outra coisa, algo que tornasse possível uma aproximação. Examinava de lanterna na mão cada palavra que pronunciavam, disposto a interpretar tudo no melhor dos sentidos e a socorrer imediatamente a pessoa em questão mal se pronunciassem as possíveis palavras crípticas, a fim de mostrar a sua gratidão, e também para falar com ela, muito provavelmente com um sussurro rouco na primeira investida, presumia.”

É exactamente por isto que fico em casa num sábado à noite, acompanhada por gelado de menta e chocolate e um livro. A comunicação parece ter-se tornado uma utopia e não tenho nem pudor nem dignidade para participar neste mutismo palrador. E ainda bem.

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