segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Epifanias de uma alma pequena


Acredito na existência da alma. Acredito porque já senti a minha a querer partir-me o peito algumas vezes. É uma alma curiosa e inquieta e não aceita confinar-se a nada, recusa convenções e devoções e nem sempre obedece aos meus desígnios.

As vantagens e as despesas de uma alma deste tipo são conhecidas. O bem e o mal coincidem no mesmo ponto, a imaginação empática. Gosta-se demasiado de visitar e imaginar toda e qualquer alteridade, pois o que interessa é abarcar a vida nas suas múltiplas manifestações e contradições.

Uma vez ofereceram-me um workshop de Reiki. Acontecia a um sábado e, apesar da generosidade da oferta, o corpo clamava por praia. Após uma longa hesitação, acabei por me levantar bem cedo e ir ao workshop, de algum modo convencida que se não abdicasse de um dia de Verão, a minha alma estaria condenada a um materialismo opressivo. Aguentei a manhã e a tarde no workshop, contrariando ora a minha vontade de fugir, ora o riso convulsivo.

No entanto, o reiki acabou por me oferecer duas epifanias. A primeira aconteceu durante o workshop. Todas as mulheres que frequentavam o mesmo, à excepção de mim, tinham alguma doença complicada. Uma deles ficou indignada, quando um dos mestres lhe deu a ler o significado espiritual da síndrome de Crohn: parece que só acontece aos lambe-cus. E foi então que a certo momento, eu vi, eu soube: as quatro mulheres que ali estavam, tinham trocado o sol e os pés descalços sobre a areia, porque estavam perdidas e precisavam desesperadamente de um sentido para a vida. Eu inclusive.

A segunda aconteceu no dia seguinte ao workshop. Depois de iniciada ao reiki, há que meditar uma hora durante 30 dias. Nunca consegui meditar mas como as mãos aqueciam realmente, decidi tentar. Pus o CD com os sininhos e comecei os exercícios sentada na cadeira. Quinze minutos depois estava deitada na cama a aldrabar todos os exercícios e fui forçada a ser sincera comigo. Admiti que não conseguia meditar, que o reiki fazia muito bem a muita gente mas a mim só me tirava os pés do chão para a cama e que durante o tempo que ali estivera, não conseguira esvaziar a mente pelo constante lamento de estar a desperdiçar tempo que podia gastar a ler. Senti-me muito mais leve depois disto e aproveitei a vela para alumiar a leitura dessa noite e meditar nos pensamentos e acções das personagens que então me ocupavam.

Este sábado fui para a Malveira da Serra. Perto do Cabo da Roca, acontecia uma “festa esotérica”, segundo uns amigos. Como não me apeteciam as calçadas lisboetas, fui. Numa “casa encantada” discutia-se a espiritualidade e o futuro da humanidade, noutras divisões faziam-se massagens e leituras de tarot, mas os caminhos húmidos da serra distraíam-me. Gosto dos caminhos misteriosos da serra, da humidade que os protege, do silêncio dos meus passos.

Houve depois uma aula conjunta de chi kuan, que comecei a fazer mas rapidamente me aborreci, pois que me apetecia fumar e aproveitar uma cadeira perfeita para olhar o mar. Gosto de estar deitada sem fazer nada, fumando o tempo. Gosto de deitar os meus olhos no mar.

Despertei desta contemplação, sentindo uma presença a meu lado. Uma galinha, de olho verde-inquieto aproximara-se, decidida a estabelecer conexão comigo. Olhou-me nos olhos, meneando a cabeça como um ponto de interrogação até se fartar e partir. Fiquei depois observando as peripécias das três galinhas que ali viviam, encantada com os seus movimentos oscilantes e as excitações que as moviam. Concluí que as galinhas, apesar de estúpidas, nunca se entendiam e que é impossível não nos divertirmos com os seus voos arcaicos.

A caminho de Lisboa, encontramos uma tasca na aldeia de Juso. Escolhi certeiramente o sítio pelo toldo e pelo nome. Lá dentro, tive a oportunidade de conversar com alguns sorrisos enrugados, descobrir que também existe bom medronho no centro e provar tordos pela primeira vez. Gosto de tascas perdidas no tempo e no espaço e a minha intuição não costuma falhar quando se trata de encontrar uma. Lá dentro, encontro sempre uma pureza que nunca consegui traduzir em palavras. Uma deficiência que felizmente consegui suplementar com a leitura das aventuras do Augie March: primeiro tem de se testar aquilo de humano com que se consegue conviver. E se o mais elevado estiver naquela taberna vazia e abafada, com as moscas, o rádio quente a zumbir entre jogadas e a cerveja de Sox Park, o que poderá fazer-se senão aceitar a mistura e dizer que a imperfeição é sempre a condição do que encontramos? Do mesmo modo, os meus olhos arranhados verão sempre a grande beleza arranhada. E deuses podem aparecer em qualquer lugar”.

Regressada a Lisboa, a noite alongou-se até desembocar na madrugada suja do Tejo. Gosto das manhãs fantasmáticas que descolam do rio com uma imponência demorada. Gosto dos fantasmas que se abeiram do rio, das mãos sujas que mendigam cigarros e dos olhares vítreos dos peixes que se extraviam da água para um balde triste. Gosto dos barcos que assombram o horizonte e dos cacilheiros que cortam a paz morta das águas. E do céu de Lisboa que nem William Turner conseguiria reproduzir.

Regressei a casa de eléctrico, já a manhã ia alta e embriagada. Com um casal de franceses, descobri que as pessoas que lêem muito ficam com papos nos olhos quando envelhecem. Como se as letras inchassem debaixo de olhos que não souberam olhar o mundo sem o ler. Ao despedir-me deles, riam muito, contentes por saber que Madame Bovary sobrevivia afinal alegre em Lisboa.


Deitei-me por fim com mais uma epifania: tenho uma alma pequena com uma vontade imensa de andar por aí, simultaneamente meditabunda e alegre. Misteriosos são os caminhos de uma alma que se sente atraída por tudo o que vive e se agita, quer se trate de galináceos, águas ou tascas perdidas no espaço e tempo. 

1 comentário:

Anónimo disse...

Sua alma é grande, e vc sabe! :)

Veronica