sábado, 16 de agosto de 2014

Enamoramentos


«Sim, todos somos arremedos de pessoas que quase nunca chegámos a conhecer, de gente que não se aproximou ou passou ao largo na vida daqueles que amamos agora, ou que então se deteve mas se cansou passado um tempo e desapareceu sem deixar rasto ou só a poeirada dos pés que vão fugindo, ou que morreu para aquele que amamos causando-lhe uma ferida mortal que quase sempre acaba por fechar. Não podemos pretender ser os primeiros, ou os preferidos, somos apenas o que está disponível, os restos, as sobras, os sobreviventes, o que vai ficando, os saldos, e é com esse pouco nobre que se edificam os maiores amores e se fundam as melhores famílias, é essa a proveniência de nós todos, produto que somos da casualidade e do conformismo, dos descartes e das timidezes e dos fracassos alheios, e ainda assim daríamos às vezes fosse o que fosse para continuarmos juntos de quem resgatámos um dia de um sótão ou de um leilão, ou que nos coube em sorte num jogo de cartas ou apanhámos nos desperdícios; inverosimilmente conseguimos convencer-nos dos nossos infelizes namoros, e são muitos os que julgam ver a mão do destino no que não é mais do que uma briga de aldeia quando o Verão já agoniza… Então apagava a luz da mesinha de cabeceira e passados uns segundos as árvores que o vento agitava tornavam-se-me um pouco visíveis e podia adormecer observando, ou porventura adivinhando, o baloiçar das suas folhas. «Que sentido tem isto», pensava eu. «O único sentido que isto tem é que qualquer vislumbre nos vale nestas tolas e invencíveis circunstâncias, qualquer ponta por onde pegar. Mais um dia a seu lado, mais uma hora a seu lado, mesmo que essa hora demore séculos a surgir; a vaga promessa de tornar a vê-lo mesmo que passem muitas datas pelo meio, muitas datas de vazio. Apontamos na agenda aquelas em que nos telefonou ou em que o vimos, contamos as que se sucedem sem receber qualquer notícia, esperamos até alta noite para as considerarmos definitivamente desertas ou perdidas, não vá acontecer que à última hora toque o telefone e ele nos sussurre uma tolice que nos faça sentir injustificada euforia e que a vida é benigna e piedosa. Interpretamos cada inflexão da sua voz e cada insignificante palavra, que porém dotamos de estúpido e prometedor significado, e repetimo-la para nós. Apreciamos qualquer contacto, ainda que tenha sido apenas o estritamente necessário para receber uma desculpa tosca ou uma desfaçatez ou para ouvir uma mentira pouco ou nada elaborada. «Ao menos pensou em mim a dado momento», dizemos para connosco agradecidos, ou «Lembra-se de mim quando está aborrecido, ou se sofreu uma contrariedade com a pessoa que lhe interessa, que é a Luísa, talvez eu esteja em segundo lugar e isso já é alguma coisa» (…). Não nos dá cuidado rebaixar-nos diante de nós mesmos, no fim de contas ninguém nos vai julgar nem há testemunhas. Quando a teia da aranha nos apanha fantasiamos sem limites, e ao mesmo tempo consolamo-nos com qualquer migalha, com ouvi-lo, com cheirá-lo, com vislumbrá-lo, com pressenti-lo, com o facto de estar ainda no nosso horizonte e não ter desaparecido de todo, com o de ainda não se ver ao longe a poeirada dos seus pés fugindo.»

(…)


A rectificação dos sentimentos é lenta, desesperadamente gradual. Uma pessoa instala-se neles e torna-se muito difícil sair, adquire-se o hábito de pensar em alguém com um pensamento determinado e fixo – e adquire-se também o de o desejar – e não se sabe renunciar a isso da noite para o dia, ou durante meses e anos, tão longa pode ser a sua aderência.