segunda-feira, 13 de maio de 2019

rakhil



Desde que conheci um pouco da sua biografia, que integra a minha mais estimada constelação. Isabelle Eberhardt, ou Mahmud Sadi, foi um astro extravagante e excepcional, fadado a arder rapidamente porque demasiado consumido numa voracidade da vida. O seu destino trágico contém muitos símbolos da minha gramática afectiva, começando pelas origens russas, os trajes masculinos de marinheiro, até às viagens exóticas e ao seu fanatismo místico. “Ir para o seio do grande oceano de mistério que é o Saara e fixar-me aí. – Um direito que bem poucos intelectuais fazem o esforço de reivindicar, é o direito à vida errante, à vagabundagem. […] Estarmos sós, sermos parcos no que necessitamos, sermos ignorados, estranhos na nossa casa e em todo o lado; e, solitários e grandes, andarmos à conquista do mundo.” Oh, Isabelle, como não entender as tuas palavras? Lembras-me Rimbaud, as tuas feições andróginas, essa pretensão ao anonimato, a tua promiscuidade (ah, palavra deliciosa!)

Enquanto escritora, não é tão boa. Leio a sua obra para a imaginar melhor. O prefácio de Aníbal Fernandes a Rakhil traz testemunhos desses que a conheceram e tornam-na mais próxima. «Bebia de mais. Era a única coisa que contrastava com a sua profunda aceitação da fé muçulmana. Sim, tinha a religiosidade intensa dos místicos e dos mártires. Vivia como um homem, como um rapaz, porque bem mais parecia rapaz do que rapariga. Mas era, com o seu ar de hermafrodita, apaixonada e sensual embora diferente de uma mulher. Ainda por cima com o peito completamente plano. Tinha pequenas vaidades, embora bem mais fosem as de um árabe elegante. Trazia as belas mãos sempre enfeitadas com henna, a roupa sempre imaculada, e quando tinha dinheiro punha desses perfumes intensos que os árabes adoram. […] Houve uma época em que passava dias inteiros nos suks, e ao ver um homem que lhe acendia o desejo, engatava-o. Fazia-lhe um sinal e saíam dali juntos. Nunca eram hipócrita nem escondia as suas aventuras. Que razão teria para fazê-lo? Não passavam de uma das facetas da sua personagem. Creio que tinha profundos êxtases religiosos; a estes ocultava-os, porém. Era muito rigorosa na observação dos rituais: cinco orações diárias na mesquita, na rua ou no deserto. Estivesse onde estivesse, rezava.”

Rakhil  é uma das poucas novelas que Eberhardt conclui; o caderno final viria a perder-se na mesma cheia do rio Aïn Sefra que matou a sua autora. Estamos assim perante uma novela incompleta, cujo desfecho foi reconstituído pelo amigo e editor de Isabelle, a título indicativo. Como diz AF: “Nunca é levado a boa recompensa imaginarmos os braços e o gesto da Vénus de Milo, ou a cabeça que olharia altivamente os mares sobre aqueles ombros da Vitória de Samotrácia.» Vale, no entanto, a pena perdermos os olhos nesta história de sexo e ciúme, pois aí se olfacteia uma sensualidade outra.

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