Desde que
conheci um pouco da sua biografia, que integra a minha mais estimada
constelação. Isabelle Eberhardt, ou Mahmud Sadi, foi um astro extravagante e excepcional,
fadado a arder rapidamente porque demasiado consumido numa voracidade da vida.
O seu destino trágico contém muitos símbolos da minha gramática afectiva,
começando pelas origens russas, os trajes masculinos de marinheiro, até às
viagens exóticas e ao seu fanatismo místico. “Ir para o seio do grande oceano
de mistério que é o Saara e fixar-me aí. – Um direito que bem poucos
intelectuais fazem o esforço de reivindicar, é o direito à vida errante, à
vagabundagem. […] Estarmos sós, sermos parcos no que necessitamos, sermos
ignorados, estranhos na nossa casa e em todo o lado; e, solitários e grandes,
andarmos à conquista do mundo.” Oh, Isabelle, como não entender as tuas
palavras? Lembras-me Rimbaud, as tuas feições andróginas, essa pretensão ao
anonimato, a tua promiscuidade (ah, palavra deliciosa!)
Enquanto
escritora, não é tão boa. Leio a sua obra para a imaginar melhor. O prefácio de Aníbal Fernandes
a Rakhil traz testemunhos desses que
a conheceram e tornam-na mais próxima. «Bebia de mais. Era a única coisa que
contrastava com a sua profunda aceitação da fé muçulmana. Sim, tinha a
religiosidade intensa dos místicos e dos mártires. Vivia como um homem, como um
rapaz, porque bem mais parecia rapaz do que rapariga. Mas era, com o seu ar de
hermafrodita, apaixonada e sensual embora diferente de uma mulher. Ainda por
cima com o peito completamente plano. Tinha pequenas vaidades, embora bem mais
fosem as de um árabe elegante. Trazia as belas mãos sempre enfeitadas com
henna, a roupa sempre imaculada, e quando tinha dinheiro punha desses perfumes
intensos que os árabes adoram. […] Houve uma época em que passava dias inteiros
nos suks, e ao ver um homem que lhe acendia o desejo, engatava-o. Fazia-lhe um
sinal e saíam dali juntos. Nunca eram hipócrita nem escondia as suas aventuras.
Que razão teria para fazê-lo? Não passavam de uma das facetas da sua
personagem. Creio que tinha profundos êxtases religiosos; a estes ocultava-os,
porém. Era muito rigorosa na observação dos rituais: cinco orações diárias na
mesquita, na rua ou no deserto. Estivesse onde estivesse, rezava.”
Rakhil é uma das poucas novelas que Eberhardt
conclui; o caderno final viria a perder-se na mesma cheia do rio Aïn Sefra que matou
a sua autora. Estamos assim perante uma novela incompleta, cujo desfecho foi
reconstituído pelo amigo e editor de Isabelle, a título indicativo. Como diz
AF: “Nunca é levado a boa recompensa imaginarmos os braços e o gesto da Vénus
de Milo, ou a cabeça que olharia altivamente os mares sobre aqueles ombros da
Vitória de Samotrácia.» Vale, no entanto, a pena perdermos os olhos nesta
história de sexo e ciúme, pois aí se olfacteia uma sensualidade outra.
Sem comentários:
Enviar um comentário