«Era a campainha da fome a soar. Reconheci
aquele tipo de fome. Ela tinha uma tal fome de amabilidade que se agarrava como
um íman a uma fome semelhante e se alimentava disso; uma fome por atenção que
atraía qualquer tipo de fome por atenção; uma fome de cega que procurava ser
conduzida por um cego; uma fome de aleijada que esperava ter um aliado num
aleijado; a fome de um surdo-mudo arrulhando com um surdo-mudo.
A Aba tinha tropeçado na verdade por sorte:
sim, ela era uma rapariguinha a envelhecer. Nascera ostentando na testa a marca
invisível da criança desamada. Não fazia qualquer diferença se realmente a
tivessem amado ou não, ou se a iriam amar ou não; a fome nascera consigo, e
consigo desapareceria. Pouco havia que pudesse apaziguar aquela fome: muito se
tinham desgastado a tentá-lo raivosamente. Era isso, mais do que a fome
genuína, que punira o mítico Erisícton, que acabara a roer os próprios ossos?
A Aba encontrara com a minha mãe uma linguagem
secreta, comum, imediatamente. Talvez fossem feitas do mesmo pano e se
reconhecessem sem dar por isso. Eram tolhidas pelo mesmo medo de desaparecer,
um desejo inconsciente de deixar algo a assinar-lhes a passagem, a inscrevê-las
no mapa. Entretanto, não escolhiam os meios ou o mapa: podia ser a pele dos
próprios filhos, a mão dum estranho. Não era culpa sua, nem era nada que
tivessem feito de mal. Como se uma fada caprichosa e estouvada as tivesse
marcado à nascença e as fizesse pensar que eram invisíveis. A sensação de que o
eram actuava nelas como o ácido do estômago e provocava-lhes ainda mais fome. Nada
havia para lenitivo de tal fome, nem uma gigantesca lente de aumentar, nem
holofotes fortíssimos, nem uma prodigalidade de atenções. A fome gania-lhes no
estomâgo como um cão sem eira nem beira. Era uma fome engenhosa, glutona, capaz
de recusar orgulhosamente a comida, um ódio envergohado a esconder e a evitar
que fosse descoberto, um ódio fremente que não se atrevia a erguer uma mão
contra si própria, um ódio mentiroso e enganador, que sabia como fazer os seus
ganidos parecerem a canção de uma sereia e que deixava a sua baba.
Olhei-a. A face amável ensombrada pela
melancolia, que imediatamente desencadeava uma sensação de culpa no
interlocutor. Ela fazia tudo o que podia para levar os outros a gostar de si. Adorava
os pais, se os tinha, os amigos, que certamente teria. Porque era a única que
nunca se esquecia de um aniversário, era a que mandava bilhetes delicados,
postais e mails, era a que sempre pegava primeiro no telefone e marcava o
número. Nunca magoava ninguém; nunca dera a ninguém um pontapé nas canelas;
nunca cabulara na escola; era sempre a boa colega e a boa aluna; ajudava os
outros; nunca mentia, ou quase nunca; era amável para com todos; e no seu
confronto com as emoções era sempre ela a perder. Ela observava-me. Estava interessada
em saber como funcionavam todas as rodinhas do meu relógio, e por amor à
descoberta estava preparada para dar cabo do relógio. Porque era que toda a
gente no mundo fazia tiquetaque tão regularmente, enquanto só ela tinha os
batimentos fora das calhas?
Reconheci o ganido sedutor. Sentira a fome da
minha mãe por demasiado tempo. Afinal, não estava ali a servir de bedel a uma delas e à outra de potencial
alimento? Sim, o amor está na margem distante de um largo mar. Ali, ergue-se um
carvalho grande, e nele está uma caixa, na caixa um coelho, no coelho uma pata,
e na pata um ovo, e o ovo tem de ser comido, para o mecanismo emocional
principiar a funcionar.»
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