sábado, 28 de janeiro de 2017

Cada um afoga-se à sua maneira



Com o aproximar do final do ano, os suplementos culturais dedicam-se a eleger os livros do ano. Tornou-se um hábito aguardar estas listas com expectativa e posteriormente anotar os títulos que me tinham escapado ou aos quais a solidão necessária tinha faltado. Porém, nos últimos três anos, tais listas não me têm trazido a satisfação tão almejada. E pergunto-me se estará a produção editorial mais empobrecida, ou o empobrecimento será da crítica, ou pior ainda, de mim mesma, cada vez mais sóbria, menos propensa a arrebatamentos.

Embora não tenha concentrado as minhas leituras em publicações de 2016, ouso a leviana afirmação: O CASO DO CAMARADA TULAEV foi dos melhores livros do ano. E a E-Primatur é um dos projectos editoriais mais recentes que acompanho com muitas ganas, sobretudo pela elegância com que têm demonstrado que não é preciso fuçar juntamente com sete cães para encontrar um osso. Resta ainda, para nossa graça e contentamento, muita literatura, negligenciada pelo cânone e pelos merceeiros de serviço. Sim, literatura dessa, grande ou alta, como preferirdes apelidá-la.

Diz o vulgo que as ninfomaníacas são tomadas pela compulsão sexual justamente porque não conseguem atingir o orgasmo. Pois assim sucede comigo no que diz respeito às leituras: leio, leio e raras vezes me satisfaço. Torno a ler, leio mais, sofregamente. E nada. Que pessoa esquisita me tornei! Ter-se-á a minha mente couraçado, secado definitivamente o solo fértil das primeiras leituras, em que tudo penetra com a força de dez marteladas, em que é possível sentir a vastidão do universo na própria pele? Mas, ah, as surpresas ainda sobrevêm e eis que um livro – sobre purgas estalinistas, vá-se lá acreditar – me agarra, os pés descolam do chão e lá vou eu, inteira em mãos e retina, rumo a essa distante e tão amada literatura! É assim, os cometas nascem à noite, justamente como reza o primeiro capítulo do livro, e há um fogo que se acende e não queremos mais apartarmo-nos da beleza. Jamais!

Kostia ponderava a compra de um par de sapatos havia semanas quando uma súbita fantasia, que até a ele o surpreendeu, deitou por terra todos os cálculos que fizera. Se passasse sem cigarros, cinema e, dia sim, dia não, sem a refeição do meio-dia, economizaria em seis semanas os cento e quarenta rublos necessários para a aquisição de um bom par de botins que a simpática vendedora de uma loja de artigos em segunda mão lhe prometera reservar «por baixo do pano». Entretanto, ia caminhando alegremente sobre solas de cartão renovadas todas as noites. Felizmente, o tempo continuava bom. Quando já tinha setenta rublos, Kostia deu-se o prazer de ir ver os seus futuros sapatos, escondidos na obscuridade de uma estante (…).
– Esteja tranquilo – disse-lhe a pequena vendedora –, os seus botins ainda cá estão, não se preocupe…
(…) Depois do momento em que aqueles olhos profundos – da cor verde-azulada de alguns bibelôs chineses expostos na vitrina do balcão – o fixaram, o olhar de Kostia passeou-se pelas jóias, pelos corta-papéis, pelos relógios, pelas caixas de rapé, pelas outras antigualhas, até se deter por acaso num pequeno retrato de mulher com uma moldura de ébano, tão pequeno que lhe poderia caber na palma de uma mão…
– Quanto custa isto? – perguntou Kostia num tom surpreendido.
– Setenta rublos; é caro, sabe? – responderam os lábios encantados.
Largando um brocado vermelho e dourado que se encontrava sobre o balcão, mãos igualmente encantadas foram buscar a miniatura. Kostia agarrou nela, perturbado por segurar entre os seus dedos grossos e sujos aquela imagem, aquela imagem viva, aquela imagem mais extraordinária que viva, aquela minúscula janela negra que enquadrava uma cabeça loira coroada por um diadema, um belo rosto oval cujos olhos eram plenos de uma atenção, de uma doçura, de uma força, de um mistério sem fundo…
– Eu levo-o – disse ele surdamente e para sua própria surpresa.

Assim começa a história, e que começo! Enquanto ascendo não consigo qualificar o que me rapta e no meu enlevo balbucio apenas: tão russo! tão próximo da minha alma! Tanta pobreza e injustiça suportada, tanta sobriedade acumulada, que só o desvario pode conciliar por momentos uma consciência fustigada para além do humanamente suportável. Seis semanas a poupar para um par de sapatos, como não sonhar com uma vida mais livre e espontânea, mais bela? A vida não nasceu para ser poupada, ela tende, à mínima guinada, para o dispêndio, para a combustão. Por isso as ervas daninhas insistem sobre os passeios calcetados, o pó se deposita sobre as nossas estantes, os vermes devoram os nossos ossos e o tempo elide as letras impressas. A natureza, o caos, tudo o que vive e secretamente se transmuta, está constantemente à espreita, à espera da sua oportunidade para respirar e insuflar o universo da eterna novidade.

O resto é enredo, engenhosamente articulado. Toda a intriga é despoletada pelo assassinato do camarada Tulaev. O leitor sabe desde o início quem o matou, razão pela qual ainda se indigna mais com os inquéritos absurdos em torno desse crime. No entanto, de todo esse absurdo é possível extrair várias aproximações racionais ao entendimento da máquina estalinista e os modos que esta achou para devir numa espécie de carnificina automática, capaz de ceifar tudo e todos, qual Saturno devorando os próprios filhos. Ninguém está salvo – os que ontem acusaram e executaram, encontram-se no dia seguinte matematicamente desviados para o lado das vítimas.

– Não sei mais nada, tenho ordens precisas. É tudo, cidadão.
Rublev foi-se embora, estranhamente leve, levado por ideias semelhantes a um voo de aves agitadas. É isto, a armadilha – a fera apanhada na armadilha, és tu a fera apanhada, velho revolucionário, és tu… E estamos todos aqui na armadilha… Não nos teremos enganado completamente algures? Patifes, patifes! Um corredor vazio, mal iluminado, a grande escadaria de mármore, a porta giratória dupla, a rua, o frio seco, o automóvel negro do mensageiro. Perto deste último, que fumava enquanto estava à espera, um outro homem, de voz baixa e pastosa:
– Camarada Rublev, é-lhe solicitado que nos acompanhe para uma breve conversa…
(…)
As pequenas ruas de dois tons, com o branco da neve e o azul da noite, iam desfilando nos vidros. «Mais devagar», ordenou Rublev, e o motorista obedeceu. Rublev abriu a janela para poder ver melhor uma nesga de rua, não importava qual, o passeio cintilava, coberto de neve virgem. Uma velha casa senhorial do século passado, com um frontão suportado por colunas, parecia dormir há cem anos, atrás da sua vedação gradeada. Os troncos prateados das bétulas luziam tenuemente no jardim. Era tudo – para sempre, num perfeito silêncio, numa pureza de sonho. Cidade debaixo do mar, adeus. O motorista acelerou. – Somos nós que estamos debaixo do mar. Não faz diferença, fomos fortes.


Victor Serge leva-nos numa viagem às profundezas dessa máquina, permitindo-nos inspecionar as várias roldanas e, o mais genial na minha opinião, mostrar-nos como todo esse terror foi perpetrado com a colaboração de homens bem intencionados, extremamente fiéis ao partido e, como tal, dispostos a aceitar toda a humilhação e pobreza para não desonrar o partido. O mecanismo totalitário deriva obviamente de Estaline mas, a certo ponto da narrativa, percebemos que este se tornou automático e nem o próprio chefe poderiam parar esta gigante máquina de ceifar vidas. Sucede sempre isso, quando um projecto para melhorar a humanidade se torna tão programático que perde de vista o valor dessa mesma humanidade. O CASO DO CAMARADA TULAEV é exímio na descrição dessa humanidade metafisicamente abismada, socorrida por uma escrita que se inclina constantemente para o sublime, alçada por uma tristeza absolutamente lírica e ridente.

1 comentário:

Luis disse...

excelente bloog..