domingo, 5 de março de 2017

A grande viagem ao coração da melancolia



Todos ignoramos de que vivemos, como poderíamos, então, deixar fugir alguma coisa e sentir remorsos por isso? Era já tarde depois do cair da noite quando, chegada a Istambul, transpus, exausta, o arco antigo da porta da cidade; o pavimento ressoava, as pequenas lâmpadas de azeite iluminavam a ruela do bazar e cheguei, por fim, diante das águas cintilantes do Bósforo, cujo fluxo incessante corria no silêncio da noite (…). A viagem não exige que tomemos decisões e não põe a nossa consciência diante de uma alternativa que nos torna culpados e arrependidos, humildes ou obstinados – até duvidarmos por completo da justiça e pensarmos que esta vida não é para nós senão um dédalo, uma prova fatal. Partir é a libertação – ó única libertação que nos restou! – e para tanto não é necessário mais do que uma coragem sem falha, renovada dia após dia…

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Na manhã seguinte, um jovem oficial que dirigia os trabalhos de desobstrução acompanhou-nos aos terraços de Maku, sobrepujados precisamente pela falésia mais alta, onde fora gravada uma inscrição comemorando a vitória de Nadir Shah, que outrora arrebatara a aldeia aos bandidos (…). O que recordo perfeitamente é o véu ligeiramente turvo do orvalho e desse dia em que, esgotada pelo calor de uma ascensão penosa, estava a tremer de frio no jardim do emir, quando uma jovem camponesa aproximou dos meus lábios um jarro de água. Porque somos assim: deliciamo-nos à vista das pérolas, do azul do mar, de uma hora de paz apesar da fúria dos incêndios, ignoramos os campos de ruínas, para aprendermos todos a mesma oração: Senhor, ajuda-nos a suportar esta vida…

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«A nossa vida parece-se com uma viagem…», e mais do que uma aventura e uma excursão em regiões inabituais, a viagem parece-me ser um símbolo da nossa existência: instalados numa cidade, cidadãos de um país, pertencendo a uma classe ou a um meio social, membros de uma família, ligados aos deveres de uma profissão, aos hábitos de uma «vida quotidiana» tecida de todos estes elementos, sentimo-nos, muitas vezes, demasiado seguros de nós; consideramos que a nossa casa foi construída para a eternidade, somos tentados a crer numa estabilidade que, para uns, torna problemático o envelhecer e, para outros, dá a qualquer mudança exterior as aparências de uma catástrofe. Esquecemos que se trata de um processo em curso, que a terra está em movimento perpétuo e que estamos implicados no fluxo e no refluxo dos oceanos, nos tremores de terra e em tudo o que se passa muito longe do imediato que nos rodeia, visível e tangível: mendigos ou reis, actores todos da mesma grande comédia. Esquecemo-lo, para por assim dizer preservarmos a paz da nossa alma, construída ela própria sobre areias movediças. Esquecemo-lo, para não cedermos ao medo.»

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Não haverá, algures, um caminho que se abre, uma garganta que conduza a outros países? Será sempre assim, o mesmo céu, de manhã e à noite, o mesmo ciclo, a mesma prece, e nunca uma resposta?

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Foi por isso que quis um dia desprender-me – de que destino ao certo, não o sabia – e julgava somente compreender que uma infelicidade me ferira, como pode acontecer a qualquer de nós, e tinha necessidade de me manter afastada, em silêncio. Como é que os outros vivem, perguntava-me eu, como suportam este país e o dia de amanhã, como o suportam? Mas quando desce uma vez mais a magia do crepúsculo, quando o dia sem sombra decresce, e as corças se mostram nas encostas do inverno já nimbadas de bruma, quando volto a ter uma hora tão cheia de inocência, sinto-me então inclinada a baixar os olhos e a arrepender-me e a não ceder nunca mais à tentação – e disponho-me plenamente a reconhecer que estamos enraizados dentro de limites estreitos e que não podemos fazer mais do que um pedaço mínimo de caminho.

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