sábado, 5 de setembro de 2015

Europa Central. Agosto 2015


Esquece tudo. As pontes ao entardecer, o infinito dos carris, a recordação do Holocausto e toda a arte, se assim quiseres.
Toda a viagem é interior e as árvores são o facto mais poético.
Como tudo o que é essencial, elas habitavam já a infância, esse território mágico de imagens cadentes que se vão parindo durante toda uma vida. As que davam fruto, alinhavam-se em fileiras intermináveis, disputando taco a taco com o Verão. Nessas tardes, a alegria impunha-se em batalhas campais sem quaisquer contemplações femininas. Era «mata» ou morre – e nunca houve tanta fé numa mão como naquela que arremessava ridente as frutas-munições.
No entanto, era preciso salvaguardar a todo o momento a cabeça. Que vacilava inevitavelmente com as primeiras chuvas. Something is broken inside me. Os frutos invernais alagavam-se então em lágrimas cítricas, partilhadas com o cão Tonecas, fiel companheiro da tristeza.
Além disso, havia também a centenária figueira, testemunha de várias desventuras geracionais, e a bravia nogueira que, em noites ventosas, nos aterrorizava em duelo com os fios eléctricos, trovejando furiosa contra os céus. E as mil moitas que o vizinho Careca esculpia para se ausentar das agruras diárias e confundir com a vegetação. Uma delas, tinha um portal invisível e lá dentro o tempo escorria de outra forma, ao compasso de vários cigarros e ao abrigo de qualquer olhar humano. Ali, eu reinava, confiante nos tempos vindouros, fumando as conquistas por vir.
Mas as árvores não são todas iguais e há qualquer coisa de especial com as da Europa Central. Animadas por um rosto alado, todo o entardecer as encontra barricadas de quietude. As suas sombras abrigam todas as memórias pacificadas e vários animais microscópicos inéditos. Quando tentamos descrever o vento que as agita ou as sombras abençoadas que delas escorrem, somos chegados ao cabo da linguagem, à beira do abismo do encantamento.
Viajamos sobretudo para descobrir a nossa mitologia singular. Na plataforma de uma estação, um pai despede-se da filha com as palavras possíveis. Pede-lhe que lhe escreva nas horas mortas, contando como são as copas das árvores nesses países distantes. Parcamente desesperadas, as suas mãos magras percorrem os bolsos rotos em busca das migalhas restantes. Só a beleza pode suster a vida olvidada de todo o sentido. A menina não entende nada, é muito nova. Porém, anos mais tarde, volvidas muitas paixões breves e indolores, essa mesma menina, então mulher com a atenção amadurecida para os factos mais íntimos, estará noutra plataforma, noutra estação, quando lhe chega a certeza de que o verde é a cor mais enigmática.
Apesar disso, os comboios continuam a desfilar nos carris.

Esquece tudo. Menos os marinheiros, o fogo e as árvores. São esses os maiores mistérios.

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