domingo, 13 de setembro de 2015

Uma prosa fosforescente


Para além das árvores, regressei à rotina acompanhada por mais um mistério: o escritor polaco Bruno Schulz.
Já tinha lido As Lojas de Canela mas decidi levar o livro comigo para me aninhar nas longas viagens de comboio. E ainda bem que o fiz. Ai, que prazer tornar a ler Agosto, o primeiro conto do livro e a melhor descrição de um verão abrasador da infância que li, em Agosto, no meio da Polónia.
Como falar de Schulz? Aliás, como traduzir por palavras qualquer mistério, qualquer encantamento que nos cativa? Tarefa nada fácil. Tentemos, no entanto, uma breve aproximação.
A primeira coisa que me ocorre dizer é que Schulz escreve de uma maneira muito particular e incomparável. Claro que podia pôr-me aqui a pensar e detectar linhagens mas, ainda assim, prefiro ater-me ao caso isolado que a sua literatura constitui. Comparam-no muitas vezes a Kafka e não consigo entender porquê. É verdade que ambos eram judeus, de algum modo ocupados por metamorfoses e a sombra do pater famílias (em Schulz, é o pai que sofre mil metamorfoses). No entanto, as dissonâncias são mais essenciais que tais meras coincidências: enquanto Kafka concentrava os seus esforços na descrição do absurdo da realidade através de uma prosa fria e depurada, como um punhal, Schulz voava para bem longe, montado numa prosa féerica e sensual, rumo à porosidade do sonho e do encantamento.
Em Cracóvia, comprei a edição inglesa que, para além de As Lojas de Canela, inclui ainda um conto, O Cometa, que não figura na edição portuguesa (belíssimo devaneio apocalíptico!) e outro tomo de contos, Sanatorium under the sign of the hourglass (ou Sanatório do Gato-Pingado) e alguns contos esparsos. Assim, pude adentrar-me ainda mais dentro desse imaginário exuberante e perturbador e verificar como Schulz foi construindo para si uma mitologia singular em torno de vários tópicos, personagens e geografias recorrentes, nomeadamente as estações do ano (existirá um mistério mais acessível que o seu eterno retorno?), os pássaros, o Livro, o Labirinto, o sono, as mulheres dominadoras como a longilínea Adela, as extravagâncias do Pai, a Praça do Mercado e a casa enorme com múltiplos quartos esquecidos pelo Tempo, etc..
Tanto a família, como a cidade, oscilam permanentemente entre dois estados, o sono onírico e a crescente voracidade do Real. Estão ora sob o signo do tédio, ora sob a ameaça do encantamento poético. E assim, se começa a perceber a função de toda esta potente maquinaria imagética. E tal vislumbre remete-nos sempre para a triste biografia de Schulz, que acabou os seus dias enclausurado num gueto em Drohobycz, a sua cidade natal, até ser assassinado pelas costas por um oficial nazi. Anos antes, por carta, Schluz, confessava: “também não sei viver sem nenhum encanto, sem um pouco de tempero, de condimento que exalte a vida”.
Há sempre um tempo, em que os encantos rareiam. Aqueles foram sem dúvida tempos muito sombrios. E uma alma à míngua só podia confiar na sua imaginação para sobreviver. Now at last one can understand the great and sad machinery of spring. (…) Where would writers find their ideas, how would they muster the courage for invention, had they not been aware of these reserves, this frozen capital, these funds salted away in the underworld?
A escrita de Schulz é isso mesmo, uma lição de sobrevivência pela digestão dos encantamentos mais elementares. Reactivando os mais potentes arquétipos inconscientes, Schulz sugere-nos, com algumas pinceladas mestras, uma paisagem primeva, muito próxima da memória do corpo e da Infância. A sua prosa fosforescente, qual fogo-fátuo ou o verão mais mortal, ilumina por breves instantes um substrato mais mágico, sempre à superfície do quotidiano, cujo magma permanentemente tenta eclodir e repetidamente falha. There are things that cannot ever occur with any precision. They are too big and too magnificent to be contained in mere facts. They are merely trying to occur, they are checking whether the ground of reality can carry them. And they quickly withdraw, fearing to lose their integrity in the frailty of realization. And if they break into their capital, lose a thing or two in these attempts at incarnation, then soon, jealously, they retrieve their possessions, call them in, reintegrate: as a result, white spots appear in our biography – scented stigmata, the faded silvery imprints of the bare feet of angels, scattered footmarks on our nights and days – while the fullness of life waxes, incessantly supplements itself, and towers over us in wonder after wonder.
 É assim o trabalho do mito, sempre enigmático e esquivo. Ou como diria Schulz, “A matéria não é para brincadeiras, enche-se sempre de um trágico sério.” Como tal, o seu resultado é sempre dúplice, e da mesma fonte jorram imagens simultaneamente solares e sombrias, permeadas tanto pela magia mais encantatória, como pela solidão mais profunda. “Um imenso girassol içado até à ponta de um formidável pé com elefantíase, aguardava o fim dos dias nesse luto amarelo, vergado pela carga da sua monstruosa corpulência. Porém, as ingénuas campainhas de subúrbio e as simples flores do percal nada podiam contra tudo isto e limitavam-se a estar muito hirtas nas suas camisas cor-de-rosa, insensíveis ao grande drama do girassol”.
Gostei muito de todos os contos. Se tivesse de eleger os predilectos, talvez escolhesse Agosto, A Visitação, The Book, Spring, Sanatorium under the signo f the hourglass e a carta, longamente citada por Aníbal Fernandes, na introdução à edição portuguesa. Mas é a totalidade da sua obra que me fascina. Mais do que um escritor, Schulz era sobretudo um sonhador: “He proclaimed a Republic of Dreams, a sovereign realm of poetry”. Não admira, portanto, que tenha sido morto pelas costas.

Nos escritos que nos deixou, existem tantas memórias de verões agonizantes, que deixam na alma uma nostalgia perene pela criatividade imolada. Como eu terei deste verão que agora se despenha pelas calçadas de Lisboa. Felizmente, existem também inúmeros delírios poéticos, capazes de acender uma alma no meio da mais escura negritude.

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