“Então,
ao passar pelas ilhas da laguna que se vão perdendo na distância, é-se tomado
por uma sensação curiosa – uma sensação de alívio, e também de tristeza, mas
profundamente impregnada de perplexidade. Veneza, à semelhança de muitas
amantes belas ou muitos vinhos densos e fortes, nunca se abre totalmente
connosco. Tem um passado enigmático, um presente contraditório e um futuro
toldado por incertezas. Deixamo-la saciados mas confusos, como um jovem que,
afastando-se feliz de um abraço, se apercebe subitamente de que o pensamento da
rapariga estava noutro lado e reflecte por momentos no que raio terá visto
nela.
[…]
No
entanto, o fascínio de Veneza não depende da arte nem da arquitectura. A cidade
tem algo de curiosamente sensual, quando não é mesmo sexual. «Veneza
envolve-nos», disse um francês do século xix, «com um encanto tão terno como o de uma
mulher. Outras cidades têm admiradores. Só Veneza tem amantes.» […]
Penso que
isto se deve em parte à estrutura orgânica. Veneza é um todo maravilhosamente
compacto e funcional: é perfeita, pequena, completa, firmada mesmo no centro de
uma laguna em forma de foice como um velho monstro dourado dentro de um charco.
[…]
Em parte
é também uma questão de luz. Os pintores venezianos primavam pelo domínio do chiaroscuro, e Veneza sempre foi uma
cidade translúcida, um lugar de ocasos arrebatadores e manhãs iridiscentes, por
muito monocromáticos que possam parecer os seus longos invernos. […]
Por outro
lado, é uma questão de textura. Veneza é um lugar de materiais voluptuosos, e
nos edifícios proliferam embutidos de mármore e pórfiro, mármore cippolino,
verde antico, jaspe, mármore grego, granito e alabastros polidos. […] Até mesmo
as águas de Veneza de vez em quando parecem seda furta-cores. […]
A
atracção de Veneza é, ainda, uma questão de movimento. Veneza perdeu aquele
encanto sedoso e onírico, mas continua a ter uma movimentação sedativa e
sedutora. Ainda é uma cidade matizada, trémula e cintilante, onde a luz do sol
brilha com suavidade por baixo das pontes e as sombras avançam lentamente ao
longo dos passeios. O movimento de beleza nada tem de rude ou de brutal. A
gôndola é um veículo de locomoção belíssima, os barquinhos dos canais
deslocam-se com um staccato delicado […].
E, em
última análise, a glória daquele lugar está no facto grandioso de Veneza em si
mesma: o esplendor e a estranheza da sua história, a ampla e melancólica laguna
que a rodeia, o intricado esplendor marinho que faz dela, ainda hoje, uma
cidade única. Quando deixarmos finalmente aquelas águas e arrumarmos o nosso
chapéu de palha, o antigo deslumbramento de Veneza perdurará na nossa cabeça; e
o cheiro a lama, incenso, peixe, antiguidade, imundície e veludo ficar-se-á
pelas narinas; e o suave marulhar dos canais secundários continuará a ecoar nos
nossos ouvidos; e aonde quer que se vá na nossa vida, sentir-se-á sempre atrás
de nós uma presença rosada, acastelada e cintilante, as cúpulas, os cordames
dos barcos e as torres inclinadas da Sereníssima.
É isto o
romantismo! É isto o vinho luxurioso e escuro de Veneza! Não admira que o
marido de George Eliot tenha caído no Grande Canal.”
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