sábado, 21 de abril de 2018

Veneza, ainda





“Então, ao passar pelas ilhas da laguna que se vão perdendo na distância, é-se tomado por uma sensação curiosa – uma sensação de alívio, e também de tristeza, mas profundamente impregnada de perplexidade. Veneza, à semelhança de muitas amantes belas ou muitos vinhos densos e fortes, nunca se abre totalmente connosco. Tem um passado enigmático, um presente contraditório e um futuro toldado por incertezas. Deixamo-la saciados mas confusos, como um jovem que, afastando-se feliz de um abraço, se apercebe subitamente de que o pensamento da rapariga estava noutro lado e reflecte por momentos no que raio terá visto nela.
[…]
No entanto, o fascínio de Veneza não depende da arte nem da arquitectura. A cidade tem algo de curiosamente sensual, quando não é mesmo sexual. «Veneza envolve-nos», disse um francês do século xix,  «com um encanto tão terno como o de uma mulher. Outras cidades têm admiradores. Só Veneza tem amantes.» […]
Penso que isto se deve em parte à estrutura orgânica. Veneza é um todo maravilhosamente compacto e funcional: é perfeita, pequena, completa, firmada mesmo no centro de uma laguna em forma de foice como um velho monstro dourado dentro de um charco. […]
Em parte é também uma questão de luz. Os pintores venezianos primavam pelo domínio do chiaroscuro, e Veneza sempre foi uma cidade translúcida, um lugar de ocasos arrebatadores e manhãs iridiscentes, por muito monocromáticos que possam parecer os seus longos invernos. […]
Por outro lado, é uma questão de textura. Veneza é um lugar de materiais voluptuosos, e nos edifícios proliferam embutidos de mármore e pórfiro, mármore cippolino, verde antico, jaspe, mármore grego, granito e alabastros polidos. […] Até mesmo as águas de Veneza de vez em quando parecem seda furta-cores. […]
A atracção de Veneza é, ainda, uma questão de movimento. Veneza perdeu aquele encanto sedoso e onírico, mas continua a ter uma movimentação sedativa e sedutora. Ainda é uma cidade matizada, trémula e cintilante, onde a luz do sol brilha com suavidade por baixo das pontes e as sombras avançam lentamente ao longo dos passeios. O movimento de beleza nada tem de rude ou de brutal. A gôndola é um veículo de locomoção belíssima, os barquinhos dos canais deslocam-se com um staccato delicado […].
E, em última análise, a glória daquele lugar está no facto grandioso de Veneza em si mesma: o esplendor e a estranheza da sua história, a ampla e melancólica laguna que a rodeia, o intricado esplendor marinho que faz dela, ainda hoje, uma cidade única. Quando deixarmos finalmente aquelas águas e arrumarmos o nosso chapéu de palha, o antigo deslumbramento de Veneza perdurará na nossa cabeça; e o cheiro a lama, incenso, peixe, antiguidade, imundície e veludo ficar-se-á pelas narinas; e o suave marulhar dos canais secundários continuará a ecoar nos nossos ouvidos; e aonde quer que se vá na nossa vida, sentir-se-á sempre atrás de nós uma presença rosada, acastelada e cintilante, as cúpulas, os cordames dos barcos e as torres inclinadas da Sereníssima.
É isto o romantismo! É isto o vinho luxurioso e escuro de Veneza! Não admira que o marido de George Eliot tenha caído no Grande Canal.”

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