domingo, 2 de julho de 2017

Freak show



Na literatura como na vida, a história reza dos vencedores. Para além do mérito, existe todo um conjunto de factores que determinam o ingresso ao cânone ou a queda no esquecimento. Hermann Ungar é um dos autores soterrados pela história, desenterrado em 2015 pela E-primatur através da tradução portuguesa de OS MUTILADOS.

É um livro perturbador em vários sentidos. Como personagem principal temos Franz Polzer, um empregado bancário neurótico e socialmente inepto cuja grande ambição é a criação de uma vida controlada e sem surpresas. Impossível não pensar em Bartleby. «Sossegava-o o facto de estar lá. Como se evidenciasse que tudo estava no seu lugar, tudo na maior das ordens, mesmo na incontrolável escuridão, nada se havia alterado nem ele houvera feito algo que pudesse alterar a ordem estabelecida e, deste modo, abrir a porta ao insólito (…). Todos os seus sentidos tinham que estar permanentemente alerta, pois o perigo existia. Não se podia deparar com alterações. Todas as semanas, contabilizava o que lhe pertencia, livros, jornais, papéis velhos, roupa interior, vestuário. Queria ter a certeza que nada se havia alterado no seu acervo.»

O perigo existe, de facto, e a vida de Polzer vê-se apartada da tão estimada rotina, completamente arremessada ao caos, num turbilhão tremendo de eventos grotescos. Do início ao fim, a narrativa não nos dá descanso e, ainda que a leitura tenha terminado e o livro regressado ao seu lugar na estante, o sentimento de repulsa persiste. No meio de tantas aberrações, Polzer acaba por ser a personagem mais simpática no meio desta descida aos infernos. Uma descida aos infernos sem qualquer paliativo e que, como Stefan Zweig disse, ficaríamos contentes por poder esquecer.


«À noite, Polzer ficava junto de Karl. Karl estava sentado na sua cadeira, parecida com as das crianças que ainda não sabem andar. Esta cadeira fora feita especialmente para ele. Na parte da frente tinha uma tábua atravessada para que Karl não caísse no caso de perder o equilíbrio. Para além disso, o tronco de Karl era preso por uma correia ao encosto. O coto do braço esquerdo estava ligado. Dele emanava um forte cheiro. O braço direito tombava inerte do tronco.»

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