quarta-feira, 26 de julho de 2017

Ninfa Moderna - Ensaio sobre o Panejamento Caído



“Não houve fadas boas – senhoras sábias e benevolentes, com muito poder na sua varinha de condão – a inclinarem-se sobre o berço da nossa modernidade intelectual, na viragem do século XIX para o XX. Os grandes sismos da história estavam próximos. Mas houve ninfas: belas aparições drapejantes, vindas não se sabe de onde, andando ao vento, sempre comoventes, nem sempre muito sábias, quase sempre eróticas, por vezes inquietantes.

Ninfas: divindades menores sem poder institucional, mas irradiantes de um verdadeiro poder de fascinação, que agita a alma e, com ela, todo o possível saber sobre a alma. Perigosas, como o são também a memória – quando reconhecida até nos seus continentes negros –, o desejo e o próprio tempo. Entre muitas outras aparições, elas foram Arria Marcella segundo Théophile Gautier, Aurélia segundo Nerval, Herodíade segundo Mallarmé, a Eva Futura segundo Villiers de l’Isle-Adam, Lulu segundo Wedekind e de seguida por Alban Berg, A Mulher sem Sombra segundo Hoffmannsthal e depois por Richard Strauss e, um pouco mais tarde, Nadja segundo André Breton…

É sabido: para que nascesse algo como uma moderna «ciência da alma», terá sido preciso que Freud visse, em 1885, surgir histéricos em crise no anfiteatro de Charcot, na Salpêtrière. Corpos perturbados, virados do avesso, gestos agitando os panejamentos dos vestidos e das camisolas, olhar perturbado do jovem médico… De todas estas perturbações – e da descoberta de que estas infelizes ninfas modernas, Anna, Emma ou Dora, na realidade, «sofriam de reminiscências» - terá nascido, contra toda a psicologia de escola, a psicanálise (…).

Ora, para que também nascesse algo como uma moderna «ciência das imagens» terá sido necessário que um poder de adaptação, em todos os pontos semelhante, viesse perturbar esse outro saber de escola chamado história da arte. Em 1893, Aby Warburg viu surgir a Ninfa – como acabaria por lhe chamar – no palco das obras-primas da Renascença florentina (…)

A questão não está, pois, em saber onde – ou mesmo quando – chegará a Ninfa ao destino, mas até onde ela é capaz de se anichar, de se esconder, de se transformar. Já às Ninfas da tradição acontecem muitas coisas e a iconografia clássica mostra-no-lo em todas as situações possíveis: sentadas ou de pé, em pose ou a correr, elanguescidas à beira de uma fonte ou adormecidas numa gruta, numa bacia ou numa concha, fiando a lã ou cantando melodias inaudíveis, dançantes ou perseguidas, agredidas ou fazendo amor, violadas ou raptoras de rapazes jovens, aguadeiras ou parteiras de deusas, kourotrophos [amas] ou amamentando Dioniso, protectoras das fontes ou fatais aos humanos…


Neste amplo e casuístico mostruário, desenha-se um muito longo e lentíssimo movimento – como um filme, rodado durante dezenas de séculos, que tivesse que ser violentamente acelerado para lhe reconhecermos a lógica – que não deixa de ser perturbador: é a irremediável queda da Ninfa, o seu movimento para o chão, o seu esmagamento ao ralenti. A questão torna-se, então, saber até onde a Ninfa é capaz de cair. Já as Ninfas clássicas se deixavam ir para o chão, se inclinavam, de bom grado se deitavam."




2 comentários:

Patrícia disse...

Se não te importas, pedir-te-ia que não publicasses. Não aumenta nada.

:)

Divido-me entre este e "Invention de l'hystérie : Charcot et l'iconographie photographique de la Salpêtrière". Os únicos que li.

Sobre Charcot, o hospital de la Salpêtrière e a iconografia, raríssima e acumulada ao longo de anos, que retrata a histeria. Trata-se das possibilidades de ouvir das imagens outra história. A histeria como uma teatralização delirante do corpo, a imagem como reforço de uma loucura encenada, fabricada. O histérico sente-se constantemente observado, dobra o corpo como performance. O médico, a partir da hipnose, re-dobra (?) o corpo segundo a sua vontade: teatro do teatro, performance do performático, espelho diante do espelho. Charcot inventa uma máquina do olhar, uma audiência (Olha Freud a espreitar).
Charcot examinou os olhos, os pulmões e os corações das mais de 4 mil mulheres que encontrou no hospital, tirou a temperatura vaginal e rectal, testou reflexos, sensibilidade à dor, realizou hipnose, banhos, recolhimento e análise de todas as secreções, dispondo tudo isso diante dos fotógrafos que arregimentou.
A torção dos corpos, durante os acessos, era variada e expressiva: ira, deboche, preguiça, desejo, religiosidade, paixão, carinho - as mulheres levantavam os braços aos céus, punham as línguas para fora, movimentavam os quadris de forma repetitiva, abraçavam o próprio corpo, serpenteavam os corpos sem dar nenhum sinal de cansaço. Mais do que solucionar, Charcot queria reproduzir, apropriar-se da loucura.

No email escrevi mal o título do livro de Baldwin: "Go tell it on the mountain", assim é que é.

Beijinhos

Patrícia disse...

:DDDD
Achei que era preciso aceitares os comentários!
Pronto, já está.