terça-feira, 11 de julho de 2017

A cantiga do bandido elevada à mais alta filosofia



Já se sabe que os domingos, mesmo os de inverno, são dias mais propensos ao tédio abrasador. O tédio é, à semelhança da melancolia, um sentimento ambíguo, repleto de potencialidades. Faz-se anunciar por um sabor acre na boca, que se adensa com um moer contínuo da carne e torna impossível o descanso; a mente revolta-se contra a planura dos dias, quer despedaçar-se contra mistérios indómitos. Quando o tédio te encontra, não resistas, alça o corpo e a alma e vai ao encontro dessa verticalidade impossível!

Assim me aconteceu um domingo destes. O tédio já estava bem instalado na soleira da minha mente, recusando qualquer entorpecimento. Escolhi um livro ao acaso e calhou-me o primeiro volume de OU – OU, de Søren Kierkegaard. Vagueei pelas páginas até encontrar DIÁRIO DE UM SEDUTOR.

Não me vou por com merdas: confesso que me aguçou a mente mas não decifrei nem metade do texto. Este é um daqueles enigmas que exige preparação, determinação e longas consultas a edições comentadas e estudos sobre a sua recepção no contexto da história da filosofia. Sabendo de antemão que não dispunha de tanto tempo, decidi-me pela leitura mais livre – adentrar-me pelo texto a dentro, ardente, tomando-o como um amante aleatório, sem qualquer distinção especial.

Foi uma aventura deliciosa. Johannes faz da sedução uma estratégia militar e convoca toda uma tradição de amantes como artilharia – Alcibíades, Giordano Bruno e Valmont. Por um lado, cativava-me o seu espírito agudo, irónico e os seus aforismos - «que uma má consciência sirva ao menos para tornar a vida interessante». Por outro, exasperava-me a sua misoginia declarada - «... não é fácil esquecer o meu olhar de soslaio. Quando eu então ficar surpreendido por a encontrar numa ambiência que não esperava, chegará nessa altura a sua vez. Se ela não me conhecer, se o seu olhar disso logo não me convencer, então, arranjarei oportunidade para olhar para ela de lado, juro que ela há-de lembrar-se da situação. Nenhuma impaciência, nenhuma avidez, tudo se desfrutará em demorados tragos; está assinalada, decerto que será alcançada»; «pesca-se sempre melhor em águas turvas; se uma rapariga tem agitação mental, pode arriscar-se muito com sucesso, o que, de outro modo, resultaria mal.»

Assim, fui progredindo na leitura de modo algo esquizofrénico, ora deleitando-me com a argúcia de Johannes, apreciando a sua estratégia infalível, ora desprezando-o como protagonista de uma misoginia disseminada pela cultura, geralmente em estado latente. Até à estocada final, absolutamente arrasadora.

Porque não pode uma noite como esta durar mais tempo? Não poderia Alectrião esquecer-se, não poderia o sol ser suficientemente compassivo nesse sentido? Mas agora já passou e desejo nunca mais a ver. Quando uma rapariga entregou tudo, enfraquece, perdeu tudo, pois, no homem, a inocência é um momento negativo, na mulher, é o mérito do seu ser. Agora toda a resistência é impossível e, enquanto ela existe, é belo amar; quando cessa, resta fraqueza e hábito. Não desejo que me lembrem a minha relação com ela; perdeu a fragrância e já lá vão os tempos em que uma rapariga, com a dor de perder o amante, era transformada em heliotrópio. Não quero despedir-me dela, nada me repugna mais do que choro de mulher e súplicas de mulher, que tudo mofificam, não tendo, porém, propriamente nada para significar. Amei-a; mas, a partir de agora, já não constitui a ocupação para a minha alma. Se eu fosse um deus, faria com ela o que Neptuno fez com a ninfa: transformava-a em homem.


Sublinhando e anotando profusamente várias passagens do diário de Johannes, perguntava-me continuamente: na textologia ocidental, foram sempre os homens os autores da arte da sedução – e a révanche do feminino, onde a encontrar?

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