segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Morte em Veneza




«Porque a beleza, Fedro, repara bem, só a beleza é divina e simultaneamente visível, e por isso ela é também caminho do artista para o espírito. Mas diz-me agora, meu querido amigo, acreditas que se pode atingir alguma vez a sabedoria e verdadeiro valor viril quando se caminha para o espiritual por via dos sentidos? Ou acreditas antes (és livre de o decidir) que esse caminho é cheio de atraentes perigos, na realidade um caminho de desacerto e pecado, que conduz necessariamente ao erro? Pois tens de saber que nós, poetas, não podemos embarcar no caminho da beleza sem que Eros nos acompanhe e se arvore em líder; podemos bem ser heróis à nossa maneira e guerreiros disciplinados, mas não deixamos de ser como as mulheres, pois a paixão é para nós sublimação e o nosso desejo deve permanecer amor – é esse o nosso prazer, é essa a nossa vergonha. Vês agora que nós, os poetas, não podemos ser sábios nem dignos? Que embarcamos necessariamente no erro, permanecemos necessariamente devassos e aventureiros do sentimento? A mestria do nosso estilo é mentira e logro, a nossa fama e respeitabilidade, uma farsa, a confiança da multidão em nós, altamente risível, a educação do povo e da juventude pela arte, um empreendimento ousado, a interdizer. Pois como podia prestar para educador aquele que possui uma tendência inata, incorrigível e natural para o abismo? Nós bem gostaríamos de o renegar para ganharmos em dignidade, mas, sempre que queremos desviar-nos, ele aí está a atrair-nos. É por isso que renegamos o conhecimento desintegrador, porque o conhecimento, Fedro, não tem qualquer dignidade ou severidade; é sabedor, compreensivo, indulgente, não tem posição nem forma; tem simpatia pelo abismo, ele é o abismo. Por isso o rejeitamos energicamente, e desde então a nossa ambição é só a beleza, o que quer dizer a simplicidade, a grandeza, uma nova severidade, um incondicionalismo renovado, a forma. Mas a forma e o incondicionalismo, Fedro, levam à embriaguez e ao desejo, podem levar a criatura mais nobre a terríveis sacrilégios do sentimento, que a sua própria severidade pelo belo repudia por infames, levam ao abismo, também elas levam ao abismo. A nós, poetas, digo-te eu, é aí que elas nos levam, pois não somos capazes de elevação, mas de excesso. E agora, Fedro, vou-te deixar, fica tu aqui e parte só quando já não me vires.»

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