segunda-feira, 6 de agosto de 2018

uma mulher não pode morrer sem primeiro florir


A Antonia Pozzi


A minha raça foi privada do descanso nocturno.

Enquanto os outros se aconchegam nos ténues consolos da messe, cabe-nos vigiar os pensamentos da floresta.

       (porque todo o demónio é pensamento. ou serão anjos? anjos sorridentes, envoltos numa lassidão azul. quem poderá esclarecer, conhecer ainda as polaridades primordiais?)

Há muito que nos afastámos da aldeia e nessa migração perdemos o sul e as asas. Faz frio. Foi-se o medo, apagou-se a fogueira

       - não faz mal, pequena, vivemos na época da electricidade e do espanto contabilizável.

A minha raça traz petrificada nos ossos uma língua silenciada. Com palavras e poeira dos cometas. alumiamos as madrugadas frias que antecedem as batalhas. Porque estamos sós mas permanecemos corajosas.

       (porém ninguém me trouxe flores ou cantos e o meu coração vai murchando na ofensa vespertina de tal improbabilidade)

Quem dirá que o dia de amanhã despontará destas mãos emagrecidas pelo tempo?
E quem sabe o que é uma árvore? Haverá maior mistério do que uma árvore?
Estacionada na noite imemorial, uma árvore ensina-nos o significado oculto de um prece, pressentida apenas pelo vento e pelos pássaros.
Das raízes à copa, uma árvore sabe que uma mulher não pode morrer sem primeiro florir.

A minha raça não conhecerá descanso até essa Primavera.

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