sexta-feira, 5 de outubro de 2018

Em caso de tempestade este jardim será encerrado





E o cais cinzento e as casas vermelhas E não é ainda a solidão E os olhos vêem um quadrado negro com um círculo de música lilás no seu centro E o jardim das delícias apenas existe fora dos jardins E a solidão é não poder dizê-la E o cais cinzento e as casas vermelhas.
Alejandra Pizarnik


YOUR FUNERAL, MY TRIAL

O morto fica mais só
quando quem fala lhe rouba
a última memória desse barco
desmesurado da infância,
construído sem vista para o mar.

O morto fica mais só ainda,
quando quem ouve se esquece da música
para escolher o seu próprio funeral,
alinhando convidados e preferindo coroas
de plástico a condizer com as lágrimas.

O morto fica mais só ainda, se possível,
quando me distraio com o mel da luz
nos vitrais ou sigo o gato amarelado
para quem a morte é apenas uma questão de
sobrevivência, talvez um jogo, se algum rato
finge entregar-se com prazer às suas garras.

Hoje, pela primeira vez, não me chegam
os dedos para contar os meus dias de veladora.
Mesmo sabendo que nenhum ritual nos consola,
tento apaziguar a terra que se abre a meus pés,
plantando cravos condenados que nunca voltarão a florir.
E invejo secretamente o morto, porque já não precisa de
conhecer a flor preferida de ninguém:
pode simplesmente deixar-se estar,
na certeza de que o chão não lhe voltará a falhar.

Os mais sós, afinal, são sempre os sobreviventes.

*

TROUBADOUR

O jardim (em) que mais amei
não tinha tratados de botânica
nem estátuas de domingo.
Cabia todo no trautear suave,
quase gemido, do banco ao lado
e tinha a tristeza prosaica de
meia dúzia de pombas desinspiradas
pelas mesmas migalhas.
Os miúdos eram os de sempre,
o futuro à exacta distância
da bola que passavam logo a outro,
assustados com a responsabilidade
dessa posse demasiado leve.
Só a fonte parecia calar-se
para nos ouvir e os pássaros
tinham um jeito caprichoso de roçar
cada cabelo teu para te mostrarem
as asas de renda em contraluz.

O único dia em que lá regressei sem ti
foi como saber outra vez que ia morrer.
Os céus não se rasgaram, ninguém se calou
para me deixar passar, nem secara
a fonte subitamente ao centro.
Ainda insisti num banco com vista
para o nosso, sem folhas a cair ou pássaros
que me emprestassem o consolo
impossível da sua sombra. Mas o sol
era agora uma arma descarregada,
contra a qual já não precisava
da muralha do teu corpo e tive
a certeza absurda de que tudo
iria continuar sem nós, e eu sem ti.
Era apenas questão de evitar o jardim
do mesmo modo que pago para fugir
à morte, escolhendo trajectos que me façam doer
todos os músculos, excepto o do coração.

*

REQUIEM POR UM PÁSSARO E UM AUTOCARRO PERDIDO

Para a Renata Correia Botelho


Mais um dia
em forma de pássaro morto.
Uma amálgama ainda quente
da manhã que nasce, espécie de beleza
desmanchada a que nem o nosso olhar
consegue servir de pietà. O vento
teima em agitar uma ou outra pena,
mas não há golpe de asa que o arranque
agora ao asfalto negro.

Partilhamos, no fundo, a impotência:
o destino que o esmagou
é o mesmo que esperamos para
embarcar sem surpresas, sem direito a atrasos.
A essa indiferença cansada prefiro
a do outro pássaro que, lá muito em cima,
hoje ainda mais, refaz a traços negros
a vida. É por esses instantes
de voo que aceito continuar a perder.

*

COME RAIN OR COME SHINE

No fundo, é isto: espera-se.
Escrevemos incuravelmente
a história dessa espera, mas
nunca se chega ao fim da rua
mais escura do passado,
nem se despe por completo o luto,
sempre outros os mortos, sempre igual a si
a morte. A espera,

essa continua. Podemos
chamar-lhe agora expectativa,
tentarmos soletrar esperança.
Só que já não queremos tanto crescer
e, sinceramente, preferimos
adiar os destinos ambicionados,
compreendendo por fim Moosbrugger, para quem
a felicidade era a distância
mais comprida entre a prisão e o tribunal.

Esforçamo-nos por vencer a dor pela
exaustão, transformá-la num bicho
que se alimente de palavras e recuse as nossas festas.
Mesmo assim, espera-se. Com
as mãos cansadas e de olhos
teimosamente postos no amor,
abrimos a janela e deixamos
a luz entrar, compassiva,
abafando a chuva que cai sem dar tempo
aos pássaros de se abrigarem. Anotamos
a palavra sinal. Ou redenção. Não interessa,
o poema não deixa de ser o mesmo

Sem comentários: