E o cais cinzento e as
casas vermelhas E não é ainda a solidão E os olhos vêem um quadrado negro com
um círculo de música lilás no seu centro E o jardim das delícias apenas existe
fora dos jardins E a solidão é não poder dizê-la E o cais cinzento e as casas
vermelhas.
Alejandra Pizarnik
YOUR FUNERAL, MY TRIAL
O morto
fica mais só
quando
quem fala lhe rouba
a última
memória desse barco
desmesurado
da infância,
construído
sem vista para o mar.
O morto
fica mais só ainda,
quando
quem ouve se esquece da música
para
escolher o seu próprio funeral,
alinhando
convidados e preferindo coroas
de
plástico a condizer com as lágrimas.
O morto
fica mais só ainda, se possível,
quando me
distraio com o mel da luz
nos
vitrais ou sigo o gato amarelado
para quem
a morte é apenas uma questão de
sobrevivência,
talvez um jogo, se algum rato
finge
entregar-se com prazer às suas garras.
Hoje,
pela primeira vez, não me chegam
os dedos
para contar os meus dias de veladora.
Mesmo
sabendo que nenhum ritual nos consola,
tento apaziguar
a terra que se abre a meus pés,
plantando
cravos condenados que nunca voltarão a florir.
E invejo
secretamente o morto, porque já não precisa de
conhecer
a flor preferida de ninguém:
pode
simplesmente deixar-se estar,
na
certeza de que o chão não lhe voltará a falhar.
Os mais
sós, afinal, são sempre os sobreviventes.
*
TROUBADOUR
O jardim
(em) que mais amei
não tinha
tratados de botânica
nem
estátuas de domingo.
Cabia todo
no trautear suave,
quase
gemido, do banco ao lado
e tinha a
tristeza prosaica de
meia
dúzia de pombas desinspiradas
pelas
mesmas migalhas.
Os miúdos
eram os de sempre,
o futuro
à exacta distância
da bola
que passavam logo a outro,
assustados
com a responsabilidade
dessa
posse demasiado leve.
Só a
fonte parecia calar-se
para nos
ouvir e os pássaros
tinham um
jeito caprichoso de roçar
cada
cabelo teu para te mostrarem
as asas
de renda em contraluz.
O único
dia em que lá regressei sem ti
foi como
saber outra vez que ia morrer.
Os céus
não se rasgaram, ninguém se calou
para me
deixar passar, nem secara
a fonte
subitamente ao centro.
Ainda insisti
num banco com vista
para o
nosso, sem folhas a cair ou pássaros
que me
emprestassem o consolo
impossível
da sua sombra. Mas o sol
era agora
uma arma descarregada,
contra a
qual já não precisava
da
muralha do teu corpo e tive
a certeza
absurda de que tudo
iria
continuar sem nós, e eu sem ti.
Era apenas
questão de evitar o jardim
do mesmo
modo que pago para fugir
à morte,
escolhendo trajectos que me façam doer
todos os
músculos, excepto o do coração.
*
REQUIEM
POR UM PÁSSARO E UM AUTOCARRO PERDIDO
Para a Renata Correia
Botelho
Mais um
dia
em forma
de pássaro morto.
Uma amálgama
ainda quente
da manhã
que nasce, espécie de beleza
desmanchada
a que nem o nosso olhar
consegue
servir de pietà. O vento
teima em
agitar uma ou outra pena,
mas não
há golpe de asa que o arranque
agora ao
asfalto negro.
Partilhamos,
no fundo, a impotência:
o destino
que o esmagou
é o mesmo
que esperamos para
embarcar
sem surpresas, sem direito a atrasos.
A essa
indiferença cansada prefiro
a do
outro pássaro que, lá muito em cima,
hoje
ainda mais, refaz a traços negros
a vida. É
por esses instantes
de voo
que aceito continuar a perder.
*
COME RAIN OR COME SHINE
No fundo,
é isto: espera-se.
Escrevemos
incuravelmente
a
história dessa espera, mas
nunca se
chega ao fim da rua
mais
escura do passado,
nem se
despe por completo o luto,
sempre
outros os mortos, sempre igual a si
a morte. A
espera,
essa
continua. Podemos
chamar-lhe
agora expectativa,
tentarmos
soletrar esperança.
Só que já
não queremos tanto crescer
e,
sinceramente, preferimos
adiar os
destinos ambicionados,
compreendendo
por fim Moosbrugger, para quem
a
felicidade era a distância
mais
comprida entre a prisão e o tribunal.
Esforçamo-nos
por vencer a dor pela
exaustão,
transformá-la num bicho
que se
alimente de palavras e recuse as nossas festas.
Mesmo
assim, espera-se. Com
as mãos
cansadas e de olhos
teimosamente
postos no amor,
abrimos a
janela e deixamos
a luz
entrar, compassiva,
abafando
a chuva que cai sem dar tempo
aos
pássaros de se abrigarem. Anotamos
a palavra
sinal. Ou redenção. Não interessa,
o poema
não deixa de ser o mesmo
Sem comentários:
Enviar um comentário