quinta-feira, 18 de outubro de 2018

o meu coração é árabe




“Quantos Árabes ilustres ligados a esta terra têm merecido a atenção da nossa gente de cultura? Apenas responderá um silêncio que magoa. No entanto, esses mouros convertidos em lenda iluminaram a Idade Média, guiados pelos noventa e nove Nomes de Alá. E, como os ventos que sopravam dos desertos de onde vinham, trouxeram aromas e fulgores de todas as civilizações que avassalaram. E foram filósofos, matemáticos, poetas, santos e heróis. Por isso, os reis cristãos peninsulares, vencedores tantas vezes pela espada, se rendiam ao seu saber e, não raro, entregavam o coração à mulher muçulmana.
(…)
Compreende-se que, no cenário das areias, «a única arte que os nómadas podem desenvolver é de facto a língua – que se torna assim o que Heidegger disse: a morada do ser. A frase do filósofo alemão é tão verdadeira que o verso poético árabe chama-se bayt (literalmente casa) e palavra diz-se mufrad (de fard, ou seja, indivíduo).»

IBN ‘ABDÛN (Évora, século XI)

regaram-no as chuvas da abastança
e saudosas frases me vêm à lembrança.

cumes cobertos de moitas floridas
de bordados mantos, sendas não esquecidas.

como esquecer-me das horas passadas
no tropel louco de ingénuas cavalgadas?

ai como era doce esse meu folguedo
passarinho à toa esvoaçando ledo.

dias tão felizes, bordados em flor,
vento em minhas vestes murmurando amor.


AL-MU’TAMID (Beja, 1040 – Aghmat, 1095)

evocação de Silves

saúda, por mim, Abû Bakr,
os queridos lugares de Silves
e diz-me se deles a saudade
é tão grande quanto a minha.
saúda o Palácio dos Balcões,
da parte de quem nunca o esqueceu,
morada de leões e de gazelas
salas e sombras onde eu
doce refúgio encontrava
entre ancas opulentas
e tão estreitas cinturas.
moças níveas e morenas
atravessavam-me a alma
como brancas espadas
como lanças escuras.
ai quantas noites fiquei,
lá no remanso do rio,
preso nos jogos do amor
com a da pulseira curva,
igual aos meandros da água,
enquanto o tempo passava…
ela me servia vinho:
o vinho do seu olhar,
às vezes o do seu copo,
e outras vezes o da boca.
tangia-me o alaúde
e eis que eu estremecia
como se estivesse ouvindo
tendões de colos cortados.
mas se retirava as vestes
grácil detalhe mostrando,
era ramo de salgueiro
que me abria o seu botão
para ostentar a flor.

--//--

solta a alegria! que fique desatada!
esquece a ânsia que rói o coração.
tanta doença foi assim curada!
a vida é uma presa, vai-te a ela!
pois é bem curta a sua duração.

e mesmo que a tua vida acaso fosse
de mil anos plenos já composta
mal se poderia dizer que fora longa.
seres triste sempre não seja a tua aposta
pois o alaúde e o fresco vinho
te aguardam na beira do caminho.

os cuidados não serão de ti os donos
se a taça for espada brilhante em tua mão
da sabedoria só colherás a turbação
cravada no mais fundo do teu ser:
é que, de entre todos, o mais sábio
é aquele que não cuida de saber.

Sem comentários: